QUOTIDIANOS – 5º CAPÍTULO

QUOTIDIANOS – 5º CAPÍTULO

Regresso ao Fundão, esperando uma situação definitiva. O nosso companheiro de viagem, numa frangalhada em Condeixa-a-Nova, afirma: “já se nota que o Fundão está no bom caminho, mas ainda tem que ultrapassar os “centralismos”; falam muito no interior, mas na hora da verdade roem a corda e não conhecem estas paisagens”.

À despedida há abraços de afectos e, à saída, a Irmã Hospitaleira Josefina Gomes, a mãe de Aldeia da Dona, o pai da Nave, onde casaram com os meus avós paternos como padrinhos do casamento, diz-me: “a sua avó paterna era muito rude, muito mandona; o seu pai, regressado dos Missionários Claretinanos era uma pessoa fina, delicada, apresentável, respeitosa…” Fiquei feliz por estas palavras. Junta-se a nós o Senhor Padre Manuel, Assistente Religioso daquela casa, homem da Pampilhosa da Serra, para agradecer as deliciosas Cerejas do Fundão, terra que tem no coração.

Mais de uma centena de peregrinos da Casa de Saúde Rainha Santa Isabel está a caminho de Fátima, uma experiência única de reflexão, comunhão com pessoas e paisagens, e de “carregamento de baterias para mais um novo ano de trabalho”, na expressão de um peregrino.

Convite declinado por compromissos já assumidos: assistir ao Crisma de dois jovens, filhos do meu amigo Miguel, juntamente com mais sessenta crismados em Meãs do campo, na Carapinheira do Campo, concelho de Montemor-o-Velho, da diocese de Coimbra.

Diz-me o professor: “da nossa região, a grande Zona da Gandra, partiram muitos habitantes para a Madeira e Açores, são criadores de vacas leiteiras e de cavalos”.

O Castelo de Montemor-o-Velho tinha o maior e melhor regimento de cavaleiros militares, com flechas e lanças venciam os inimigos de Portugal. Também naquele local foi gizado o plano para matar Inês de Castro. Os assassinos saíram de noite, remando com muita força, contra a corrente do Rio Mondego.

Uma visita à Reserva Natural do Paul de Arzila (Montemor-o-Velho), os patos bravos parecem adivinhar quando os caçadores estão de serviço e não saem dos seus abrigos. Estes conhecem bem os seus inimigos.

Os residentes daquelas paragens abundantes de produtos agrícolas, para os proteger de roubos, defendiam-se com cartuchos de sal, o que deixava marcas para sempre nos conhecidos ladrões. Nesses tempos conhecíamos os lapidadores do erário público.

Num almoço, um funcionário público com muitos anos de serviço, diz “que há determinados funcionários que poderiam dar muito lucro se não aparecessem nos serviços, se metessem férias para sempre…”

Um Jovem assistido, com ar de muito sono, diz-me que se dedica ao culto do Deus Morfeu: “tenho por este Deus uma grande devoção, sonho em muitas direcções, mas não sei quais. Depois de os meus pais se separarem e ficar entregue à minha avó, fiz do sono uma religião. Tenho amigos, mas gosto mais de saber onde estão os meus inimigos. Contra eles, o bocejo é uma arma.”

Segue-se um companheiro das “nossas lides de saúde” que todos os dias me dita um aforismo: “é melhor dar do que emprestar: custa aproximadamente o mesmo”. Sorrio e concordo.

Em Gouveia, falo com o Provedor da Santa Casa da Misericórdia, enquanto pela janela da Escola Apostólica de Cristo Rei observo o monte do Farvão, a querer ressuscitar depois dos nefastos incêndios de 2017. Há esperança de vida num pequeno bairro de vivendas, alinhadas e estudadas por mãos sábias de um arquitecto e escultor.

Na TV, uma Eucaristia presidida pelo Bispo do Porto e capelães militares, comemora o Dia da Força Aérea: as palavras repletas de significado do celebrante comoveram-me…

Há tempos um jornaleiro contou-me que, numa quinta onde trabalhava, a proprietária tinha os figos contados para ninguém lhes tocar. Há dias também me contaram que a dona de uma quinta, ausente temporariamente, também avisara uma vizinha do número de frutos que tinha nas árvores. Qualquer dia há vídeo-vigilância nas árvores… Há gente que prefere ver a sua fruta cair de podre a partilhar uma azeitona… Na Escola Apostólica de Cristo Rei em Gouveia, um recanto poético onde passei parte da minha juventude, não resisto a colher e a comer morangos e framboesas, frutos vermelhos que adoro.

Na Guarda, nas Lameirinhas, os meus parentes Tó Valente e Maria Amélia, no final de uma grande tertúlia cultural de âmbito regional, colocam na mesa as milheiradas, os torresmos, o chouriço espanhol, as galhetas, presunto arraiano e queijo de cabra de Vale de Espinho (Sabugal). Uma delícia, merecia o primeiro prémio em qualquer festival gastronómico.

Com tanta intoxicação futebolística e publicitária, viro-me para canais de música, ou agarro-me à escrita, à conversa, ao convívio e à leitura.

Não é todos os dias que se vê um Bispo na fila de um balcão de um Hospital, aguardando a sua vez para visitar um Pároco Diocesano em Ortopedia e uma Irmã Religiosa das Missionárias de São João Batista.

Passagem pelo Tortosendo, visitando um casal amigo rodeado por três lindas flores, as suas amáveis filhas, duas já avós. Apareceram os genros. É bonito ver famílias unidas.

Visito uma doente no Hospital da Cova da Beira, cumprindo o meu dever e uma obra de misericórdia. Nos meus tempos de estudante, na Escola Apostólica de Cristo Rei em Gouveia, foi muitas vezes uma das nossas Mães, manifesto-lhe a minha gratidão, o meu reconhecimento. Compensa-me com um sorriso e uns olhos cheios de bondade apesar do sofrimento… Tem um corpo frágil mas continua a ser a mesma alma consagrada aos outros.

Há pessoas que retiram horas às suas comodidades e, sem pensar no vil metal, dedicam-se voluntariamente aos outros. Vejo, no Hospital da Covilhã, senhoras com farda canarinha, empurrando um carrinho com livros, revistas e jornais para os doentes.

 

 

António Alves Fernandes

Aldeia de Joanes

Julho/2017

 

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