A respeito de hum Padre, que dizia ter sido Mestre de Rhetorica

_A respeito de hum Padre, que dizia ter sido Mestre de Rhetorica; que
tomava triaga contra o veneno que ainda lhe havião de dar; que dizia que
estava eleito Cardeal; e que era demaziadamente trigueiro, se deo este_

MOTE.

_Não tem côr de Cardeal_

Não ajuda ao Padre a cara;
Revolvo antigos Annaes,
E vejo que os Cardeaes
Tinhão a pelle mais clara;
Será maravilha rara
Achar hum de côr igual;
Forão brancos como a cal
Mazarino, e Alberoni;
E a não ser este o Negroni,
Não tem côr de Cardeal.

_Respondeo em Decimas, ás quaes se fizerão as seguintes_:

Que venhão fuscos garraios
Metter em Versos a mão!
Potente Jove, aonde estão
Os teus vingadores raios?
Hum homem de coiros baios
Segue as Muzas tuas filhas;
Tu, pois, que os vaidozos trilhas,
Faze que este, em todo o cazo,
Saia logo do Parnazo,
E passe para Cassilhas.

Se em rhetorico exercicio
Já soubeste regras dar,
Tambem eu posso fallar,
Porque sou do mesmo officio;
Que o teu cérebro tem vicio,
He verdade assás notoria;
Na Poezia, e na Oratoria
Vaz em total decadencia;
Collega, tem paciencia,
Has de vir á palmatoria.

No teu escuro Papel,
Aos bons ouvidos ingrato;
Achei hum vivo retrato
Da confuzao de Babel;
A' patria lingua infiel
Ès da Nação o desdoiro;
Bem sei que te chego ao coiro;
Mas não merece passagem,
Que a batina, e a linguagem
Ajuntem Clerigo, e Moiro.

A quem me queira arguir,
Mostro, Padre, o tal Papel;
He testemunha fiel,
Não me deixará mentir;
Em novos termos urdir
Mettes a todos n'um canto;
Que uzas palavras de encanto
Assentão gentes maxuchas,
Boas para ajuntar bruchas,
Ou para tirar quebranto;

Deixei-me, pois, de criterio,
E tomei melhor caminho;
Meu amigo, a hum louquinho
He loucura fallar serio;
Chova, pois, o vituperio
Sobre esse tostado coiro;
Saia o tal Cardeal Moiro,
Que o Capinha, alvoroçado,
Vai, por ordem do Senado,
Metter garrochas no toiro.

Fulla escrava Americana
Já mandava á luz do dia
Hum Crioilo, que seria
Nódoa da Curia Romana;
Carregado de banana,
Porque no caminho coma,
O rumo da Europa toma;
E em terra, marchando á pata,
Com sacco, e folha de lata,
Deo a sua entrada em Roma.

Assim mesmo estropeado,
E envolvido em grosso panno,
Foi entre o Povo Romano
Com mil respeitos tratado;
Do vento, e do Sol queimado,
Semblante quebrado, e afflito,
Tem tal dom na cara escrito,
Que gritavão de redor,
Huns, que he o Rei Belxior,
Outros, que he S. Benedito.

Tomou a Benção Papal;
E teve tanto poder,
Que sem o Papa o saber,
Ficou feiro Cardeal;
Voltou para Portugal
Já Cardeal Protector;
Achou cá pouco favor;
E zombão-lhe do Capello,
Por ter mui crespo o cabello,
E ser muito bassa a côr.

Erra o Vulgo os passos seus;
He hum cego, e maldizente;
A côr he méro accidente,
Todos são filhos de Deos.
Porém para os lucros teus
O Capello te faz mal;
No S. João, e Natal
Terias gôrda guedelha,
Armado de faca velha,
Pincel, e pote de cal.

Padre, vai-te o mundo ao pêllo;
E c'o a lingua maldizente
Te vai cortando igualmente
As Poezias, e o Capello;
Porém eu, que sou singelo,
E meus contrarios ameigo,
Te affirmo, piedozo, e meigo,
Que se não tens, por teu mal,
Em Roma o de Cardeal,
Tens no Parnazo o de Leigo.

Deves voltar outra vez,
E dizem que nisso fallas;
Mas pégão-se pelas sallas
Teus molles tardîos pés.
Se ajuda de custo vês,[24]
Fazes-te côxo, e ronceiro;
Meu Padre, és muito matreiro,
Já todos estão de acôrdo;
E sem te verem a bórdo,
Não pões a mão no dinheiro.

[Nota de rodapé 24: Pedia huma ajuda de custo.]

Tua saude se estraga,
Mas teu Medico condemno;
Meu amigo, o teu veneno
Não se cura com triaga;
Para a tua antiga chaga
Medicina impropria he esta;
Muda, pois vês que não presta;
Grita c'os olhos em braza,
Que te fechem n'uma caza,
E que te sangrem na testa.

De balde em Lisboa gritas,
Attestando a Italia inteira,
Que regeste huma Cadeira
Nos Claustros dos Jezuitas;
As obras que vejo escritas
Provão que nos tens mentido;
Até das Ordens duvido,
Quando as tem cabeças tontas;
Tu, cá pelas minhas contas,
Ès hum mulato fugido.

Foge outra vez, se tal és,
Qual foge apupado mono;
Antes que venha teu dono,
E te ponha nas Galés;
Antes que enfeite teus pés
Legal, sonóro fuzil;
Não veja o patrio Brazil,
Que os hombros do filho bello,
Vindo buscar hum Capello,
Só achárão hum barril.

Dizem todos, que és fingido,
Que ninguem louco te chame;
Por mais que eu lhe jure, e clame,
Que és mesmo doido varrido;
Dizem que estás conhecido,
E que o fazes por estudo;
Em tal cazo prompto acudo,
E de outro lado te ataco;
Se não és doido, és velhaco,
E talvez que sejas tudo.

Mas já quem póde me ordena,
Que armas ponhamos em terra;
Apôs sanguinoza guerra,
Alce a frente a Paz serena;
Sobre essa pelle morena
Em paz teu Capello ajusta;
Assento que he coiza justa
Seguires methodo novo,
E não dares gosto ao Povo,
Que quer rir á tua custa.

Não te finge falso agrado
Meu semblante contrafeito;
Não encobre honrado peito
Coração refalseado;
Se me julgas disfarçado,
Alta injustiça me fazes;
Eu te juro eternas pazes;
E se falto aos votos meus,
Ah Padre, permitta Deos
Que eu sempre ensine rapazes.

E tu, que sem estes sustos
Vives cheio de alegrias,
Serenos, doirados dias,
Aos pés de teus Reis Augustos;
Tu, que por titulos justos
Te chamas o novo Horacio,
Quando entrares em Palacio
Conserva de mim lembranças,
Porque tenho as esperanças
Postas em ti, e no _Estacio_.[25]

[Nota de rodapé 25: Bobo célebre.]

MOTE.

_Hum suspiro de repente,
Hum certo mudar de côr,
São evidentes sinaes
De que o peito occulta amor_.

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