RORTY, Richard - Filósofos Modernos e Contemporâneos

RORTY, RICHARD

EUA - 1931/2007

(Pragmatismo de CHARLES SANDERS PEIRCE)

“não há nada em nosso intimo, exceto o que nós mesmos lá colocamos”.

Notas biográficas

Richard RORTY nasceu em Nova York, no seio de uma família de ativistas políticos, fato que influenciou fortemente a sua obra e o seu ideário. Precoce, em seus primeiros seis anos já lia TROTSKY, aos quinze começou a frequentar a universidade de Chicago e em 1956 obteve o Doutorado na célebre universidade de Yale. Contundo, para seus críticos, a sua precocidade e o seu intelecto não foram suficientes para fazê-lo ir além da média dos Filósofos estadunidenses que geralmente adéquam as suas teses ao Empirismo e ao Materialismo.

A rejeição à Filosofia estadunidense

O padrão de vida dos cidadãos estadunidenses é admirado, desejado e copiado por multidões de adoradores que se deslumbram ante a ostentação de riqueza e de poder que lhes é característica. Adoradores que podem ser encontrados em todas as camadas socioeconômicas, mas com uma esperada simetria em termos de cultura. São, geralmente, as pessoas de nível cultural inferior que se sentem mais fascinadas pelas quinquilharias esfuziantes que lhes chegam através do cinema, da televisão e de outros meios de comunicação, sem atentar, inclusive, para o mau-gosto dos exageros.

É certo que a sociedade estadunidense tem valores reais como a liberdade, a democracia, etc. que merecem o aplauso de todos, mas para os adoradores citados o que interessa de fato é o “american way lyfe”.

E é provável que resida justamente nesse “estilo de vida”, de “estar no mundo”, um dos motivos para o persistente desprezo sofrido pela filosofia estadunidense, sob a alegação de que os sistemas ali desenvolvidos são primários”, “rasos”, “medíocres e outros adjetivos de cunho negativo, os quais, aliás, são também aplicados à sociedade como um todo.

Alguns críticos mais exaltados chegam a afirmar que existe uma incompatibilidade quase congênita entre aquele povo e as questões intelectuais, teóricas, filosóficas, superiores etc.

É claro que ao se fazer uma critica com tal severidade comete-se injustiças; porém, ressalvadas as exceções, vê-se que realmente os ideários ali produzidos trazem o indefectível ranço do antigo Empirismo inglês, do sempre presente Materialismo – subdividido entre o Pragmatismo e o Utilitarismo e de outras tendências menores que se esgotam na glorificação da busca pelo ganho físico, pelo resultado concreto e pelo sucesso material a qualquer preço. Críticos mais contundentes chegam a dizer que os estadunidenses tratam a Filosofia como se ela fosse um reles balanço contábil ou, pior, um manual de como se tornar rico.

Ademais, a essas características pejorativas soma-se o fundamentalismo religioso do país que incita o surgimento de uma moralidade baseada em questionáveis valores religiosos.

Uma mescla que é solene ou discretamente censurada e rejeitada pelos pensadores mais ortodoxos, principalmente aqueles que foram educados nas tendências europeias ou orientais (no Budismo, por exemplo) e que por isso se acostumaram a sistemas filosóficos mais profundos, densos e elevados.

As críticas à Filosofia de RORTY

E com a Filosofia de RORTY não é diferente, não obstante a fama que o mesmo obteve. Aliás, sobre a questão da popularidade alcançada, os seus críticos afirmam peremptoriamente que a mesma deveu-se apenas à superficialidade de suas ideias e textos que, por isso, tornaram-no acessível às pessoas de cultura canhestra. Além, é claro, do poderio econômico estadunidense que investiu alto em sua publicidade.

Sua frase mais célebre: “não há nada em nosso intimo, exceto o que nós mesmos lá colocamos” é um exemplo sempre apontado de sua mediocridade e talvez desonestidade intelectual, já que sem o menor pudor ele plagiou esse antigo conceito que remonta a LOCKE, BERKELEY, HUME e outros antigos empiristas do “Velho Mundo”.

Contudo, se olhado mais amistosamente e desconsiderando o fato de que as suas teses realmente nada acrescentaram ao saber humano, talvez seja justo creditar-lhe o mérito de ter devolvido à ribalta da filosofia contemporânea essas antigas teses que foram parcialmente solapadas pelos novos sistemas surgidos, principalmente após a Segunda Guerra.

 E justo, também, será buscar em suas ideias, ainda que não sejam originais, novos enfoques que possam ajudar a compreender a complexidade do Universo e da vida.

Na sequência veremos suas concepções mais conhecidas e também uma breve explanação sobre o Pragmatismo.

O ideário

Como já foi dito, a sua Filosofia é, ao cabo, uma revisitação ao Empirismo e às doutrinas que lhes são afeitas: o Utilitarismo e o Pragmatismo.

Raras vezes ele fez incursões em outros campos filosóficos e quando as fez aproveitou para combinar teorias diferentes, como, por exemplo, quando concordou com KANT (Immanuel 1724-1804, Alemanha) sobre a nossa limitada capacidade de chegar à “essência das coisas” e com os textos cristãos que se resignam a não buscar qualquer essência, delegando a um suposto “Deus” as chamadas “verdades primeiras, ou essenciais”.

 E foi através dessas combinações e aceitações que ele desenvolveu a sua sistemática, cuja base escorava-se na tese de que somos formatados pelo meio-ambiente, como, aliás, fica claro na citada afirmativa de que “em nossa mente, ou alma, ou inconsciente só existe aquilo que nós mesmos colocamos”.

A “tabula rasa”

RORTY aceitava essa tese, porém argumentava que tal afirmativa não seria totalmente correta, já que as nossas Percepções* estão intimamente ligadas com as nossas crenças, valores e pré-conhecimentos que impomos à coisa que foi apreendida, ou captada, como se pode observar no exemplo abaixo:

Vendo duas tábuas verticais e uma horizontal sobre as primeiras, eu não percebo apenas o conjunto das madeiras, mas “capto” um rústico banco, ou uma tosca mesa etc.

NOTA do AUTOR – PERCEPÇÕES*: o que captamos através dos Sentidos (tato, olfato, visão, audição, paladar).

Tudo que os sentidos (tato, visão, audição, paladar e olfato) nos trazem são “modificados” pelo que acreditamos, ou já conhecemos.  Com isso, RORTY ecoava o que outros Empiristas já afirmavam acerca do “filtro modificador” que nosso raciocínio (ou Razão) impõe ao mundo que percebemos.

NOTA do AUTOR - o leitor (a) notará aqui uma das incongruências de seu modo de pensar, haja vista que para haver o “filtro modificador”, necessariamente houve captações anteriores dos elementos que o formam, considerando que nada trazemos congenitamente.

A alma é “uma coisa curiosa”. O falso dualismo.

Avançando pela metafísica, RORTY diz que a “A Alma é uma coisa curiosa”, pois mesmo sendo inatingível racionalmente e ainda que não possa ser demonstrada, ou comprovada empiricamente, a crença em sua existência é quase unânime.

Com efeito, são minoritários os ateus e os céticos. Geralmente se acredita que em “algum lugar” cada homem tenha alguma coisa além do seu corpo físico. Que tenha alguma espécie de essência, ou alma. Tendemos a nos retratar como se possuíssemos um duplo, ou uma duplicidade. Um corpo físico e uma “alma abstrata, ou o Eu verdadeiro”, a qual está necessariamente ligada à “verdade essencial ou primeira” e isenta dos erros oriundos das imperfeições dos sentidos (tato, visão, audição, paladar e olfato) e das captações feitas pelos mesmos.

Todavia essa ideia, ou essa tendência de nos imaginarmos duplos (corpo e alma) não foi encampada por RORTY que já na introdução de sua obra “Consequências do Pragmatismo”, de 1982, afirma que a “alma” não passa de uma invenção humana.

RORTY, Charles S. Peirce e o Pragmatismo

O Pragmatismo é uma doutrina desenvolvida por CHARLES SANDERS PEIRCE, estadunidense, nascido em 1839 e falecido em 1914. Uma de suas teses centrais afirma que a ideia que fazemos de um objeto, de um Ser, de uma coisa etc. é apenas a soma dos efeitos práticos que nós vislumbramos neles. Por exemplo, eu vejo em uma lata de refrigerantes vazia apenas lixo. Outra pessoa verá um material a ser reciclado que lhe dará algum dinheiro. Outra, um recipiente para suas moedas etc.

Outra de suas teses básicas, afirma que a “Verdade” de uma teoria só pode ser confirmada através da experiência física, concreta, material. Enquanto tal confirmação não acontece ela deverá ser vista apenas como abstração, fantasia. Ademais, para ser considerada “verdadeira” a teoria deverá apresentar efetivas utilidades práticas, mostrar-se útil e capaz de gerar êxito ou satisfação.

Outro ponto a ser destacado é relativo ao “Conhecimento”, o qual seria um instrumento a serviço da ação, tendo o pensamento um caráter puramente finalistico1; ou seja, voltado para certa finalidade.

RORTY e o Pragmatismo. O conhecimento.

Dentro desse espírito, RORTY escreveu a sua primeira grande obra “A Filosofia e o Espelho da Natureza”, de 1979. Nela, ele tratou de confrontar a ideia de que o Conhecimento é um modo de representar o mundo, como se ele fosse um espelho ou um tela.

Sua objeção a essa afirmativa apoiava-se nos seguintes argumentos:

1.   Supomos que a nossa experiência do mundo seja algo que nos é “dada diretamente”, ou seja, que captamos a “informação bruta” sem qualquer esforço intelectual.

2.   Também supomos que após essa informação ter sido captada pelos nossos sentidos (tato, visão, audição, paladar e olfato), o nosso raciocínio (Razão) começa a refletir automaticamente sobre a mesma, adequando-a ao “todo”.

Mas, seguindo o filósofo WILFRID SELLARS, RORTY acreditava que a noção de que “algo nos é dado (ou seja, captado sem esforço)” seja apenas um mito.

Nós não conseguimos ter acesso a uma “informação bruta” que nos mostre o que seja efetivamente determinado objeto, ou coisa, ou Ser etc. através apenas dos sentidos (tato, visão, audição, paladar e olfato), justamente pela limitação de nossos aparelhos sensoriais.

Não conseguimos experimentar, ou ter uma a experiência, fora do pensamento ou da linguagem.

NOTA do AUTOR eu não consigo, por exemplo, ter a experiência sobre o que é um cão, se não for através do que penso sobre ele. Não consigo simplesmente “sentir” um cão.

Só conseguimos ter ciência ou conhecimento de algo através do encaixe do mesmo em determinado lugar, ou conceituação. Conceitos, aliás, que apreendemos por meio da linguagem. Nossas percepções (aquilo que percebemos ou captamos) estão completa e intimamente ligadas ao modo como usamos a linguagem para nos referirmos ao mundo. Tudo que percebemos ou captamos é “acomodado” aos padrões de linguagem. Em tudo necessitamos colocar um nome, um rótulo, um conceito.

E caso tal conceito nos seja desconhecido, logo na primeira hora pesquisaremos seu significado. Tendemos, naturalmente, a organizar as informações que nos chegam, pois, pressentimos, talvez por intuição, que no Futuro usaremos aquela informação e que é necessário que ela esteja corretamente arquivada nas “prateleiras” de nossa memória para ser facilmente localizada quando for preciso.

RORTY sugere, pois, que aquilo que conhecemos é apenas uma questão de diálogo (pressuposto da linguagem) com outros indivíduos. Mais uma questão de convívio, ou de prática social.

Quando decidimos o que vale como “conhecimento efetivo”, baseamos o nosso critério na suposição de que aquilo a sociedade nos deixará dizer e menos no fato de saber o quanto aquilo está relacionado com o Mundo. Agradar ao meio social, ou evitar sua censura e/ou sua punição, importa-nos mais que a eventual “verdade” do fato.

Assim, o que podemos avaliar como conhecimento é limitado por contextos sociais, por nossa história pessoal e pela liberdade que a sociedade nos permite ter. Galileu, por exemplo, sabia da rotação da Terra, mas esse “conhecimento” foi-lhe proibido pela sociedade da época.

A “verdade”, portanto, segundo RORTY, é o que os seus contemporâneos permitem dizer.

A Verdade

Nesse ponto RORTY retoma a velha questão: o que é a Verdade?

Será apenas aquilo que podemos dizer sem sofrer alguma punição, como indicou as suas conclusões acerca do conhecimento?

Aqui o filósofo já se mostra ciente de que existem fatos e nuances que ultrapassam a dicotomia “verdade - mentira” e exigem uma abordagem mais complexa. Principalmente no campo da ética, como se pode observar no exemplo que segue:

Usar crianças como soldados soa para a maioria das pessoas como um ato condenável. Antiético. Mas essa é uma opinião relativa, pois os que se beneficiam do sofrimento desses soldados-crianças acham tal procedimento correto. E até ético, se ingênua ou cinicamente, considerarmos que tais soldados-crianças lutam pela liberdade de seu povo, por um ideal, ou em buscam de melhores condições de vida etc.

Vê-se, pois, que para cada argumento haverá um contra-argumento. A verdade pura estará sempre encoberta por várias camadas de pré-conceitos, pré-julgamentos, crendices, pseudos moralismos, cinismo, ingenuidade e outras tantas facetas do caráter humano.

É um “diamante” que só se revela após uma dura e difícil lapidação, como acontece quando se emprega o método socrático da Mauêtica* para se desvendar o significado mais profundo de cada noção, como, por exemplo, da Bondade, da Beleza, da Justiça, da Maldade, da Fealdade, da Injustiça etc.

NOTA do AUTOR – MAUÊTICA* – método utilizado por SÓCRATES que consistia em fazer perguntas sucessivamente mais complexas sobre determinado tema visando chegar à sua verdade mais profunda e que colateralmente expunha a ignorância do interlocutor que antes se gabava de seus conhecimentos.

O saber e o conhecimento. A intuição.

Não é raro usarmos algumas expressões populares cujo significado remete automaticamente à pura “intuição”, a “algo” que está além da racionalidade.

Dentre outras, nesse quesito, destaca-se a sentença “do fundo do coração”, já que ela sinaliza claramente que o conhecimento que se tem de algo, provém diretamente do intimo, da alma humana.

 Ao dizer que “sabemos do fundo do coração”, sugerimos que esse “ente misterioso (o fundo do coração)” é uma “coisa” que capta a “verdade primeira das coisas”. Que captura a “realidade do mundo”, como se existisse uma ligação direta entre o nosso “fundo do coração” e as “essências das coisas”.

Essa situação, para alguns eruditos, é o sinal evidente de que nós temos a capacidade de atingir à essência das coisas e o conhecimento seria, então, uma maneira de espelharmos o Mundo.

Contudo, para RORTY tal espelhamento seria impossível, pois segundo a sua ótica, somos incapazes de absorver e de compreender qualquer tipo de essência. Ademais, essa representação estaria sempre comprometida, já que para ele somos incapazes de captar qualquer coisa sem lhe deixar alguma marca pessoal. Logo, aquilo que espelhássemos viria contaminado com as nossas características.

Verdades morais fundamentais

A constatação dessa impossibilidade, segundo seus critérios, levou RORTY a abandonar a tese de que existem “verdades morais fundamentais”.

Passou a ecoar a tese de vários outros estudiosos de que não pode haver o “certo” ou o “errado absoluto, pois o conhecimento ou o saber que embasam as ações, é apenas aquele que a sociedade nos permite e estará sempre impregnado de experiências individuais e/ou atinentes às condições que imperam em diferentes ocasiões históricas.

RORTY reconhecia que é uma situação que acarreta certo estresse para o individuo, já que ele é induzido a agir de modo considerado correto pela sociedade, mas que é contrário às suas convicções íntimas, fato que o leva a sentir-se “traidor” de suas verdades. Contudo, ele alerta que esse sentimento de “traição” pode ser indevido, haja vista a relatividade dos conceitos. Como saber se os valores íntimos são justos e corretos?

Deve-se crer que há alguma “verdade” sobre a vida, ou alguma “lei moral absoluta que se está violando ao se priorizar os valores básicos individuais? É preciso acreditar que existe alguma “verdade absoluta” para se imaginar que se age de acordo com a dignidade humana?

Não! Responde RORTY, com firmeza. Para ele, somos simples mortais sem acesso a nenhuma “verdade moral” mais elevada. E essa constatação deveria bastar para atenuar a nossa responsabilidade e aliviar a nossa consciência, assim como as censuras que fazemos ao outro que eventualmente tenha cometido algum erro.

É claro que isso não significa um perdão incondicional, pois ainda que relativa, sempre existe alguma moral a ser observada. Também não significa que a vida deixou de ter problemas, porém, como não existe, ou não temos acesso a uma lei moral absoluta, não devemos sofrer a angústia de tentar em vão alcançar o inatingível.

Que nos contentemos em aperfeiçoar continuamente os nossos parâmetros éticos para bem solucionar os problemas que nos acessíveis.

E para RORTY isso já é feito através da solidariedade. Somos deixados com nossa lealdade junto com outros Seres humanos para juntos enfrentarmos as adversidades. Na falta das “Luzes da Razão (ou do esclarecimento do raciocínio) o instinto de animal que somos, faz-nos agir com nossos melhores sentimentos em relação aos demais, para poder esperar que o inverso aconteça conosco. Talvez, continua o filósofo, isso seja o suficiente.

Epílogo

Como se pôde ver, as concepções de RORTY não primam pela originalidade. Porém, ainda assim optamos por nos estender sobre algumas para reforçar conceitos importantes para o conjunto da disciplina. A ele, pois, devemos essa ressurreição de temas que a contemporaneidade por vezes afasta do cotidiano. Não é um mérito desprezível.

 

Produção e divulgação de TANIA BITENCOURT, rien limitée, do Rio de Janeiro, na Primavera de 2013

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