A TEMPESTADE.

Sibilla o vento:--os torreões de nuvens
      Pésam nos densos ares:
Ruge ao largo a procella, e encurva as ondas
      Pela extensão dos mares:
A immensa vaga ao longe vem correndo,
      Em seu terror envolta;
E, d'entre as sombras, rapidas centelhas
      A tempestade solta.
Do sol no occaso um raio derradeiro,
      Que, apenas fulge, morre,
Escapa á nuvem, que, apressada e espessa,
      Para apaga-lo corre.
Tal nos affaga em sonhos a esperança,
      Ao despontar do dia,
Mas, no acordar, lá vem a consciencia
      Dizer que ella mentia!
As ondas negro-azues se conglobaram;
      Serras tornadas são,
Contra as quaes outras serras, que se arqueiam,
      Bater, partir-se vão.

Oh tempestade! Eu te saúdo, oh nume,
      Da natureza açoite!
Tu guias os bulcões, do mar princesa,
      E é teu vestido a noite!
Quando pelos pinhaes, entre o granizo,
      Ao sussurrar das ramas,
Vibrando sustos, pavorosa ruges
      E assolação derramas,
Quem porfiar comtigo, então, ousára
      De gloria e poderio;
Tu que fazes gemer pendido o cedro,
      Turbar-se o claro rio?

Quem me dera ser tu, por balouçar-me
      Das nuvens nos castellos,
E ver dos ferros meus, emfim, quebrados
      Os rebatidos élos!
Eu rodeára, então, o globo inteiro;
      Eu sublevára as aguas;
Eu dos volcões com raios accendêra
      Amortecidas fráguas;
Do robusto carvalho e sobro antigo
      Acurvaria as frontes;
Com furacões, os areiaes da Lybia
      Converteria em montes;
Pelo fulgor da lua, lá do norte
      No polo me assentára,
E vira prolongar-se o gelo eterno,
      Que o tempo amontoára.
Alli, eu solitario, eu rei da morte,
      Erguèra meu clamor,
E dissera:--sou livre, e tenho imperio;
      Aqui, sou eu senhor!»

Quem se podéra erguer, como estas vagas,
      Em turbilhões incertos,
E correr, e correr, troando ao longe,
      Nos liquidos desertos!
Mas entre membros de lodoso barro
      A mente presa está!...
Ergue-se em vão aos céus: precipitada,
      Rapido, em baixo dá.

Oh morte, amiga morte! é sobre as vagas,
      Entre escarcéus erguidos,
Que eu te invoco, pedindo-te feneçam
      Meus dias aborridos:
Quebra duras prisões, que a natureza
      Lançou a esta alma ardente;
Que ella possa voar, por entre os orbes,
      Aos pés do Omnipotente.
Sobre a nau, que me estreita, a prenhe nuvem
      Desça, e estourando a esmague,
E a grossa proa, dos tufões ludibrio,
      Solta, sem rumo vague!

Porém, não!... Dormir deixa os que me cercam
      O somno do existir;
Deixa-os, vãos sonhadores de esperanças
      Nas trévas do porvir.
Doce mãe do repouso, extremo abrigo
      De um coração oppresso,
Que ao ligeiro prazer, á dor cançada
      Negas no seio accésso,
Não despertes, oh não! os que abominam
      Teu amoroso aspeito;
Febricitantes, que se abraçam, loucos,
      Com seu dorído leito!
Tu, que ao misero rís com rir tão meigo,
      Calumniada morte;
Tu, que entre os braços teus lhe dás asylo
      Contra o furor da sorte;
Tu, que esperas ás portas dos senhores,
      Do servo ao limiar,
E eterna corres, peregrina, a terra
      E as solidões do mar,
Deixa, deixa sonhar ventura os homens;
      Já filhos teus nasceram:
Um dia acordarão desses delirios,
      Que tão gratos lhes eram.
E eu que vélo na vida, e já não sonho
      Nem gloria, nem ventura;
Eu, que esgotei tão cedo, até as fézes,
      O calix da amargura:
Eu, vagabundo e pobre, e aos pés calcado
      De quanto ha vil no mundo,
Sanctas inspirações morrer sentindo
      Do coração no fundo,
Sem achar no desterro uma harmonia
      De alma, que a minha entenda,
Porque seguir, curvado ante a desgraça,
      Esta espinhosa senda?

Torvo o oceano vai! Qual dobre, soa
      Fragor da tempestade,
Psalmo de mortós, que retumba ao longe,
      Grito da eternidade!...

Pensamento infernal! Fugir covarde
      Ante o destino iroso?
Lançar-me, envolto em maldicções celestes,
      No abysmo tormentoso?
Nunca! Deus pôs-me aqui para apurar-me
      Nas lagrymas da terra;
Guardarei minha estancia atribulada,
      Com meu desejo em guerra.
O fiel guardador terá seu premio,
      O seu repouso, emfim,
E atalaiar o sol de um dia extremo
      Virá outro após mim.
Herdarei o morrer! Como é suave
      Bençam de pae querido.
Será o despertar, ver meu cadaver,
      Ver o grilhão partido.

Um consolo, entretanto, resta ainda
      Ao pobre velador:
Deus lhe deixou, nas trévas da existencia,
      Doce amizade e amor.
Tudo o mais é sepulchro branqueado
      Por embusteira mão;
Tudo o mais vãos prazeres, que só trazem
      Remorso ao coração.
Passarei minha noite a luz tão meiga,
      Até o amanhecer;
Até que suba á patria do repouso,
      Onde não ha morrer.

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