ULTIMOS MOMENTOS DE ALBUQUERQUE

 

AO MEU AMIGO A. AYRES DE GOUVEIA


Companheiros, sinto a morte
Pairando já sobre mim;
Cessaram vaivens da sorte,
Desço á terra, d'onde vim...
Do calix da desventura
Eis esgotada a amargura;
No leito da sepultura
Terei descanço por fim.


Terei: a campa é um asylo
Que ao impio deve aterrar,
Mas eu dormirei tranquillo
Sob a lagea tumular.
Eu... desgraçado, que digo!
Nem lá espero um abrigo,
Que os meus restos no jazigo
Irão talvez insultar.


Murmurando: «aqui repousa
Um desleal portuguez,»
Irão partir minha lousa,
Meu nome calcar aos pés:
E o guerreiro que descança
Não poderá, por vingança,
Brandir na dextra uma lança,
Cingir ao peito um arnez...


Quaes foram, rei, os meus crimes
Para haver tal galardão?
Por que a fronte assim me opprimes
Com a tua ingratidão?
De vis intrigas cercado
Ouviste seu impio brado.
E sobre as cans do soldado
Lançaste negro baldão.


Não merecia tal premio
Quem debaixo d'este céo,
Da roxa aurora no gremio,
Um novo imperio te deu;
Quem á custa d'uma vida
Nas batalhas consumida,
Ante as quinas abatida
A India inteira rendeu.


Por dar-te a c'rôa brilhante
Que em tua fronte reluz,
Fiz a meus pés arquejante
Cahir a opulenta Ormuz;
Malaca sentiu meu raio,
E em Gôa, roto o Sabaio
Entre o sangue, entre o desmaio,
Alcei o pendão da cruz.


Então desde o Nilo ao Ganges
Cem povos armados vi,
Erguendo torvas phalanges
Contra mim e contra ti;
Vi os filhos do deserto
Em ondas rugindo perto;
Mas com ferro em campo aberto
Ás suas iras sorri.


Contra as lanças portuguezas
A India luctou em vão,
Que em troca d'ouro e riquezas
Veio comprar seu grilhão.
Aos golpes de meus soldados
Vi seus thronos abalados,
Vi ante mim ajoelhados
Reis d'Onor e de Sião.


Mas d'Asia não pôde o ouro
Cegar-me com seu fulgor,
Porque a honra é o thesouro
Dos meus passados, senhor.
Eu quiz adornar-te a frente
C'um diadema refulgente:
Ganhei o sceptro do Oriente,
E a teus pés o fui depôr.


N'esses campos de batalha
Onde audaz o conquistei,
Das armas sob a mortalha
Porque exangue não findei?
Entre os louros da victoria
Morrêra ao menos com gloria;
Do teu soldado a memoria
Não a mancháras, ó rei.


Eu desleal?! se meus brados
Podem chegar até vós,
Erguei-vos, restos sagrados
De meus extinctos avós!
Erguei-vos da campa fria,
E com sangue, á luz do dia,
Lavae a nódoa sombria
Que arrojaram sobre nós!


Eu desleal... mas ao mundo
Que vale queixas mandar?
As vozes d'um moribundo
Não vão na terra eccoar...
Surge, ó morte!... e vós, amigos,
Socios de tantos perigos,
Vinde... nem só inimigos
Me restam ao expirar.


No reino vos deixo um filho:
Nossos feitos lhe ensinae;
Dizei-lhe qual foi o trilho
Que em vida seguiu seu pae...
Dizei-lhe qual foi meu norte;
Mas, em quanto á minha sorte,
Oh! não lhe aponteis a morte,
A vida só lhe apontae...


E se fallardes um dia
A dom Manoel, o feliz,
Dizei-lhe que na agonia
Albuquerque o não maldiz;
Que á beira da sepultura,
Para um filho sem ventura,
Invoco sua ternura,
Se alguns serviços lhe fiz.


E vós... e vós, portuguezes,
Nossa patria defendei;
Dae-lhe os peitos por arnezes,
Seja a patria vossa lei.
N'um throno que ella não tinha
Eu vol-a deixo rainha,
Mas não sei o que adivinha
Meu pensamento... não sei.


Entre as sombras do futuro,
Meu Deus! a patria em grilhões!
Pelo mar em vão procuro
Seus orgulhosos pendões...
Coberta d'amargo pranto,
Lá se envolve em negro manto...
Lá roja a face em quebranto...
Ella, a grande entre as nações!


Oh! se este braço podéra
A fria lousa quebrar,
Este braço inda se erguêra
Da tumba, para a salvar;
Apontando-lhe a vingança,
Inda lhe dera esperança,
E empunhando a antiga lança,
Á morte a fôra arrancar.


Mas eis marcado o momento
No livro d'além dos céos...
Eis a morte... o passamento...
São findos os dias meus...
Companheiros de victoria,
De tantos dias de gloria,
Guardae... guardae na memoria,
D'Albuquerque o extremo adeus...


A morte... a morte... que anceio!
Sinto um gêlo sepulchral...
Abre-me, ó terra, o teu seio,
Quero o repouso final...
Desce, guerreiro cançado,
Desce ao tumulo gelado...
Mas a affronta... deshonrado...
India... filho... Portugal!...
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