ULTIMOS MOMENTOS DE ALBUQUERQUE
Autor: Soares de Passos on Tuesday, 20 November 2012
AO MEU AMIGO A. AYRES DE GOUVEIA Companheiros, sinto a morte Pairando já sobre mim; Cessaram vaivens da sorte, Desço á terra, d'onde vim... Do calix da desventura Eis esgotada a amargura; No leito da sepultura Terei descanço por fim. Terei: a campa é um asylo Que ao impio deve aterrar, Mas eu dormirei tranquillo Sob a lagea tumular. Eu... desgraçado, que digo! Nem lá espero um abrigo, Que os meus restos no jazigo Irão talvez insultar. Murmurando: «aqui repousa Um desleal portuguez,» Irão partir minha lousa, Meu nome calcar aos pés: E o guerreiro que descança Não poderá, por vingança, Brandir na dextra uma lança, Cingir ao peito um arnez... Quaes foram, rei, os meus crimes Para haver tal galardão? Por que a fronte assim me opprimes Com a tua ingratidão? De vis intrigas cercado Ouviste seu impio brado. E sobre as cans do soldado Lançaste negro baldão. Não merecia tal premio Quem debaixo d'este céo, Da roxa aurora no gremio, Um novo imperio te deu; Quem á custa d'uma vida Nas batalhas consumida, Ante as quinas abatida A India inteira rendeu. Por dar-te a c'rôa brilhante Que em tua fronte reluz, Fiz a meus pés arquejante Cahir a opulenta Ormuz; Malaca sentiu meu raio, E em Gôa, roto o Sabaio Entre o sangue, entre o desmaio, Alcei o pendão da cruz. Então desde o Nilo ao Ganges Cem povos armados vi, Erguendo torvas phalanges Contra mim e contra ti; Vi os filhos do deserto Em ondas rugindo perto; Mas com ferro em campo aberto Ás suas iras sorri. Contra as lanças portuguezas A India luctou em vão, Que em troca d'ouro e riquezas Veio comprar seu grilhão. Aos golpes de meus soldados Vi seus thronos abalados, Vi ante mim ajoelhados Reis d'Onor e de Sião. Mas d'Asia não pôde o ouro Cegar-me com seu fulgor, Porque a honra é o thesouro Dos meus passados, senhor. Eu quiz adornar-te a frente C'um diadema refulgente: Ganhei o sceptro do Oriente, E a teus pés o fui depôr. N'esses campos de batalha Onde audaz o conquistei, Das armas sob a mortalha Porque exangue não findei? Entre os louros da victoria Morrêra ao menos com gloria; Do teu soldado a memoria Não a mancháras, ó rei. Eu desleal?! se meus brados Podem chegar até vós, Erguei-vos, restos sagrados De meus extinctos avós! Erguei-vos da campa fria, E com sangue, á luz do dia, Lavae a nódoa sombria Que arrojaram sobre nós! Eu desleal... mas ao mundo Que vale queixas mandar? As vozes d'um moribundo Não vão na terra eccoar... Surge, ó morte!... e vós, amigos, Socios de tantos perigos, Vinde... nem só inimigos Me restam ao expirar. No reino vos deixo um filho: Nossos feitos lhe ensinae; Dizei-lhe qual foi o trilho Que em vida seguiu seu pae... Dizei-lhe qual foi meu norte; Mas, em quanto á minha sorte, Oh! não lhe aponteis a morte, A vida só lhe apontae... E se fallardes um dia A dom Manoel, o feliz, Dizei-lhe que na agonia Albuquerque o não maldiz; Que á beira da sepultura, Para um filho sem ventura, Invoco sua ternura, Se alguns serviços lhe fiz. E vós... e vós, portuguezes, Nossa patria defendei; Dae-lhe os peitos por arnezes, Seja a patria vossa lei. N'um throno que ella não tinha Eu vol-a deixo rainha, Mas não sei o que adivinha Meu pensamento... não sei. Entre as sombras do futuro, Meu Deus! a patria em grilhões! Pelo mar em vão procuro Seus orgulhosos pendões... Coberta d'amargo pranto, Lá se envolve em negro manto... Lá roja a face em quebranto... Ella, a grande entre as nações! Oh! se este braço podéra A fria lousa quebrar, Este braço inda se erguêra Da tumba, para a salvar; Apontando-lhe a vingança, Inda lhe dera esperança, E empunhando a antiga lança, Á morte a fôra arrancar. Mas eis marcado o momento No livro d'além dos céos... Eis a morte... o passamento... São findos os dias meus... Companheiros de victoria, De tantos dias de gloria, Guardae... guardae na memoria, D'Albuquerque o extremo adeus... A morte... a morte... que anceio! Sinto um gêlo sepulchral... Abre-me, ó terra, o teu seio, Quero o repouso final... Desce, guerreiro cançado, Desce ao tumulo gelado... Mas a affronta... deshonrado... India... filho... Portugal!...
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