UM CIDADÃO DE CORPO INTEIRO

UM CIDADÃO DE CORPO INTEIRO

Parente e Amigo de longa data, sempre presente desde a minha infância. A Mãe, uma Bismulense, Natividade dos Anjos Valente, apaixonou-se por Domingos Mateus, natural da Redondinha (Cerdeira do Côa), e ali constituíram família.

O seu filho, António Valente, com muitos familiares na Bismula (Sabugal), ali se deslocava e desloca, à terra natal da sua Mãe, ali vai matar saudades e recordar familiares e amigos.

Com o meu saudoso PAI, deslouvávamo-nos duas vezes durante o ano, para receber por empréstimo alguns escudos, para fazer face às despesas familiares. No outono, na colheita dos frutos da terra, era devolvido o pecúlio emprestado. Naqueles tempos a palavra dada era respeitada e cumprida, não eram precisas assinaturas nem testemunhas. A Palavra dada era uma assinatura, que valia mais que mil palavras e escrituras. A Palavra era escrita na memória, pois a maioria era analfabeta apesar de honrada. Nos dias de hoje, nada disto acontece, bem pelo contrário, o lema é enganar o próximo as vezes que for necessário.

Aquela família fiava e emprestava muito dinheiro a emigrantes para seguirem para França à procura de melhor vida, e ninguém lhes faltou com um tostão. Era uma família que emprestava aos pobres, não cobrava comissões nem juros…

Nos Serões da Aldeia, falava da vida dos Santos e protectores das sementeiras, das pragas, das colheitas do ano, às vezes entrava a má-língua. Começavam no Santo Amaro em Aldeia da Dona, depois era o S. Sebastião, da Bimula, Irmandade que tinha irmãos por todas as povoações vizinhas, padroeiro das maleitas, das pragas e das devoluções, culto escolhido pelo mundo cristão. El-Rei D. Sebastião, entre 1578 e 1579, decretara que em todo o reino se construíssem capelas em seu louvor, a fim de o Santo proteger todas as populações da fome, da peste e da guerra. Havia também o Santo Ildefonso na procissão do Peroficós; São Paulo em Ruivós; Santo Estevão, São Bartolomeu, Santo Antão, Senhora da Ajuda da Malhada Sorda; Senhor dos Aflitos de Vilar Maior; e o S. Marcos no Carvalhal do Côa (Badamalos). Aí nem o Menino Jesus lhes valia na pancadaria entre a rapaziada da Bismula e as gentes de “Badamalhalos” pela disputa da beleza das moçoilas da terra, que eram apaixonadas pelas duas freguesias.

Um bismulense, inspirado nos ensinamentos de São Sebastião, contrabandista de gema, nunca chegava a casa com a carga completa. Um dia encheu uma carga de excrementos de burro e quando os carabineiros o interceptaram, ficaram com a borrada mercadoria, e ele escapou-se. Valeu São Sebastião, Padroeiro da Sua Irmandade. Ah! Grande Bismulense!

Quando se ia para a Cerdeira do Côa, subíamos as Barreiras Vermelhas. As juntas de vacas transpiravam por todos os poros, com carradas de batatas, enriquecendo os Tracanas, as Marianas e outros comerciantes que as remetiam via-férrea para Lisboa.

O António Valente fez a Escola Primária e o exame da 4ª Classe no Sabugal, com o memorável Professor Cavaleiro. Fez o Magistério Primário e deu aulas na freguesia do Gonçalo, Terras dos Cesteiros.

Alistado no Exército, fez a recruta de cabo miliciano em Tavira e, com o Curso de Furriel, rumou à Guiné Bissau com muito medo mas crente na sorte: ”a sorte protege os audazes.” Foi destacado para a Delegação Escolar de Bissau, perto do Liceu Honorário Barreto. O Director Escolar mandou-o para o mato, a fim de fazer exames aos nativos e militares. Assim, percorreu a Guiné de lés-a-lés com muitos sustos e sobressaltos. No entanto, lembra-se que as melhores ostras do mundo foram saboreadas em Santa Susana, na fronteira com o Senegal, com bombardeamentos à mistura.

Regressado à Metrópole e, em concurso público, foi trabalhar para a Direcção Geral de Menores. Colocado no Reformatório do Mondego (antiga Residência dos Bispos Egitanienses que a Primeira República usurpou à Igreja, e que é actualmente Cadeia de Apoio ao Estabelecimento Prisional Regional da Garda, com internamento de reclusas), aí trabalhou vinte e oito anos no Instituto de Reinserção Social. Agora aposentado, colabora com os Lares da Guarda e com comunidades de jovens, que lhes agradecem os caminhos andados pelas benesses recebidas. Na sua casa respiram-se afectos, humanidade e espiritualidade; também se comem excelentes produtos bismulenses.

Eis mais um grande Homem da Bismula, um cidadão vertical, samaritano e humanista.

 

António Alves Fernandes

Aldeia de Jones

Julho/2018

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