A UM RETRATO
Autor: Bulhão Pato on Saturday, 5 January 2013
És tu, sim, o mesmo olhar, A mesma ardente expressão, Com que teus olhos sabiam, Tão habilmente occultar O gêlo do coração. Como fascina o teu ser? Agora, que eu posso ver, Vejo bem que não és bella. Quem for buscar no teu rosto, A severa correcção Que esta palavra revela, Tirar feição, por feição... Não pode achal-a, bem sei. Oh! mas nessa viva luz, Que teus olhos illumina, Ha de achar, como eu achei, O fogo que nos seduz, A chamma que nos fascina! E agora vais escutar; Agora, que a Providencia Piedosa me quiz salvar D'essa fatal influencia, Vais saber como te amei! Não é sómente da gloria, Das illusões, da ventura, Que é doce narrar a historia. Repassando na memoria Tantas scenas de amargura, Vendo-as saltar palpitantes Ante meus olhos agora, Com toda a sinistra pompa Da vida que tinham d'antes, Ao ver de quanto é capaz, Não sabes?... na propria dor, O coração se compraz! Medindo o padecimento Do martyrio atroz e lento Que me trouxe o teu amor, S'inda aterrado contemplo, As crenças que fui depôr Sobre as aras d'esse templo, A dor do arrependimento Ha de salvar-me da culpa Ante os olhos do Senhor. Ai de ti! mil vezes mais És tu desgraçada agora! Viveste, reinaste um'hora, E com que imperio! jámais, Em delirio o pensamento Te fez julgar adorada Como eu te adorei, jámais! Ninguem neste mundo ousára, Erguer a mão para um culto Tão santo como eu criára! Tu foste a que, cega um dia, Por loucura e por vaidade, As crenças que nelle havia, Destruiste sem piedade! Punida estás, bem punida, Sabe pois que amor do ceo, Amor como foi o meu, Encontra-se um só na vida! Inda ao ver-te... porque não, Porque t'o devo occultar?! Este morto coração, De novo sinto pular Em meu peito fatigado! Emfim, se o destino agora, Quer que não possa existir Da esperança do porvir, Deixal-o existir embora, Da saudade do passado! Esse é meu como tu foste Na illusão de tanto amor, E tu mesma, tu, que um dia Com semblante mudo e frio Lhe disseste o extremo adeus, Com quanto remorso e dor Has de ter rogado a Deus Perdão de tal desvario! E dizes tu que ao _dever_, Sacrificaste a existencia E sujeitaste o meu ser!!... Pois ha dever neste mundo, Que aos olhos da Providencia, Possa mais alto valer Do que aquelle amor profundo Que tu fizeste nascer?! ............................. ............................. Quando foi? vivo o momento, E quanto então nos cercava Existe em meu pensamento: Era á tarde; o firmamento, De nuvens se carregava, E nos fraguedos da costa O mar soturno quebrava. Olhei-te, e vi nesse instante, Assumir o teu semblante, Aquella mesma expressão, Que de toda a natureza Fatal respirava então. Pausada, lenta, glacial, A tua voz respondia, A tudo que eu proferia! E depois dos labios teus Desprendeste um frio adeus! Cuidaste sacrificar A Deus em tua loucura, Sem ver que foste apagar A chamma d'essa ternura Que só elle pode dar, E te atreveste a tentar O poder do Creador, Na obra da creatura! Ai de ti! mil vezes mais És tu desgraçada agora! Viveste, reinaste um'hora, E d'esse imperio, jámais Na terra serás senhora! Fevereiro de 1855.
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