PEQUENO CONTO EM PROSA POÉTICA

PEQUENO CONTO EM PROSA POÉTICA
“BOCADO DE INFÂNCIA”

Sentado a olhar o mar no porto de Denia, o velho poeta filho de Lagos nativo da ribeira, deixa-se enlevar por um emaranhado de recordações. Tudo lhe vem à memória, por entre o ruido do mar e os pios das gaivotas que dançam em bebedeira de azul no rasto da espuma dos barcos de pesca, esperando que alguns restos de peixe sejam atirados borda fora.
Olhando sem ver o esvoaçar das asas brancas, os seus pensamentos são cortados pelo riso cristalino de um garoto, que tenta infrutiferamente pôr no ar um papagaio de papel de amarelo. O petiz alegre e feliz corre que corre, gritando para uma menina de longas tranças:

- Mana, não sei o que aconteceu! Ajuda-me, tu consegues, tu és maior que eu.

A cena foi um clic na memória. Possivelmente é a sua velhice que traz à colação a loucura num frasco da vivência conservado em água de ternura, que derrama com um brilho nos olhos, molhos de imagens da infância; as brincadeiras da altura, momentos puros de saudade que vão e vêm nas ondas da existência, enrolando-se nas areias magnéticas do passado, como parte do seu poema:

Que vagarosas saudades,
silenciosas lembranças,
aos muros do meu desgosto,
sou um poeta esquecido,
que suspira no tempo vencido,
quando o sonho perde o rosto.

Esse sonho com rosto de infância, de desafios à ilusão, de ardores e tolerância, de amores e enredos de medos e segredos.
Também ele tivera receios e as interrogações de menino, as quais tinham o esclarecimento e a proteção da sua irmã mais velha. Ela era a mais bonita, a mais forte, a mais erudita. Para o Zé João a sua irmã Vitória Branca era uma princesa, como aquela do livro dos contos de fadas que tinha o mesmo nome, com a sua grande trança que resplandecia ao sol, imaginando que por vezes, alguma borboleta viria de mansinho descansar as asas no belo cabelo da irmã.
Absorto na sua divagação mental, O velho poeta cisma nas recordações! Um sorriso lhe aflora os lábios, ao recuar ao período da inocência.

- § -

De novo de saída, não conseguia estar em casa, só queria rua e brincadeira. Mesmo quando chovia, lá saia ele com bola de trapos debaixo do braço, sapatos pendurados ao pescoço a saltitar de poça em poça.
Naquele dia chuviscava, ninguém na rua, apenas ele e o seu espirito rebelde, saltando e pulando. As suas vizinhas, aquelas duas meninas um pouco mais velhas, sempre muito limpas e arranjadas de bandelete e vestidos de chita, ficavam à janela vendo a chuva cair e a olhar para as brincadeiras do Zé João e não resistiam em cantar-lhe a ladainha que tanto o chateava….

Zé João foi à missa
a cavalo d´uma lagartixa
veio de lá um cão
mordeu-lhe a pila
larga isso cão!
que não é pão
é a pila do Zé João.

Soltava dois palavrões para as meninas e saía correndo para casa, refugiando-se no colo da irmã.
- O que foi Zé perguntava Vitória Branca.
- São elas mana, aquelas miúdas parvas, estão sempre a implicar comigo!
- Deixa lá irmão, não ligues, brinca em casa.
- Mana, mas eu gosto é de estar na rua, sentir a chuva e o vento! Eu não gosto de brincar em casa.
- Está bem, mas por enquanto ficas aqui até parar de chover, depois podes ir brincar.

Zé João ficava no colo da irmã muito sossegado enquanto esta lhe acariciava o cabelo. A sua mente fervilhava no aconchego do colo da irmã e na segurança dos seus braços. De repente lá surgiam os seus receios e as respetivas interrogações.
- Mana se eu morresse amanhã, tu fechavas-me os olhos?
- Que patetice Zé, tu não morres amanhã!
- Mas irmã se a morte vier, tu fechas-me os olhos?
- Zé, tu és filho da rua, tens a proteção do sol, do mar e da lua! Se a morte chegar ela não te consegue agarrar. Tu corres no vento, por entre o sol e o mar e, a lua que ama os meninos da rua, vai dizer onde eu posso esconder-te para que nada te aconteça e eu estarei sempre junto de ti. Com a minha magia vou proteger-te.
O menino ficava silencioso, enroscava-se na irmã, calava a inquietude, esperando sereno que a chuva parasse para voltar à rua.

- § -

Faz-se tarde, o velho poeta sentado no paredão descruzou a perna, puxou mais para si a gola do casacão, num gesto de conforto como se fosse essa a resposta ao frio da saudade criado pela distância que a memória levou a percorrer, até encontrar a infância e cumulativamente a sua irmã. Levanta-se com a esperança infinita por cumprir na íntegra, a plenitude do seu tempo saciando a sede de viver e amar tudo e todos, deixando fluir no físico e na alma o tempo; o do passado, o do presente e o do utópico futuro. Uns tempos que o pensamento decanta que se mesclam na nostalgia, saudade e carinho da infância e nas referências de um amor fraterno que a alquimia do momento transmutou em poema.

Nas telas do tempo erudito e dedicado,
olho o Céu, enquadrando a linha do horizonte.
Solto o pensamento, prisioneiro do tempo e da saudade
galgando distancias, atravessando a ponte
revivendo tempos de um tempo passado,
fronteira do inconsciente que busca o sentimento!
Égide seleta de muitos momentos de felicidade
que correm docemente na brisa morna do vento.

Na fímbria da exaustão, um aperto de saudade
Um rosto no horizonte, uma aura na brisa calma
Um reencontro com o teu olhar! A beleza da tua alma.

- § -

Levanta-se e caminha só, mas feliz pelo pensamento, que pairou no tempo a tempo de curar os seus desejos, absorvendo no passado na inocência da infância a inspiração que goteja em escrita, bálsamo que vai sarando dores, temores e lamentos desassossegados.
Levada pelos ventos da bonança a criatividade deu forma às palavras parindo um conto de prosa poética, porque é da poesia que o velho poeta se alimenta!

João Murty

Género: 

Comentários

Adorei, adorei!!!

´´ Zé, tu és filho da rua, tens a proteção do sol, do mar e da lua! Se a morte chegar ela não te consegue agarrar.``

Como eu gosto destes contos trazidos do passado! Como o passado se torna belo quando  o derramamos em palavras! É uma perfeita combinação; lembranças e palavra escrita... a palavra escrita eterniza as lembranças... é a riqueza que nos acompanha quando atingimos uma idade mais avançada. É uma liberdade que ninguém nos pode roubar... lembranças e escrever. Gostei mesmo muito!  Merece, um dia ser lido, este conto. Força e continuação nesse livro. Muitos de nós esperaremos por ele.

Fernanda

 

É um conto real. Uma passagem da vida ornado com poesia. Sobretudo é um manifesto a uma pessoa de alma grande, a minha irmã mais velha, padroeira dos meus desassossegos.

Continuação de uma boa semana!

 

João... Amado pelo "sol e a lua" o mar, disse a Fernanda Mesquita.

Lembrou de mim? "O SOL E A LUA"

Abraços!

Eu lembro-me sempre dos amigos e a Poetisa das Palavras Doces, é um dos que está presente no meu coração!

Um beijo

Belo poema! Grande poeta boa leitura!

Abraços!

É na poesia que a humanidade se encontra. Percorrê-la exige amanhecer a cada noite, até as rugas se tornarem vida. Tudo o que amamos profundamente, converte-se em parte de nós mesmos. Essa continuidade é dada pelo amor que escrevemos, e por aquele, que em dobro recebemos, quando as nossas palavras são lidas.

Um Beijo Madalena das Palavras Doces

Se você simplesmente colocar um ponto de "exclamação", haverá uma razão. irei entender o que quis dizer. Um pingo é letra, para que sabe ler. Uma palavra é tudo, para quem sabe escrever.

Madalena Cordeiro

Beijihos poeta!

gostei muito de ler, um dia talvez tento um destes coemas ou poeontos, não sei como os chamar!



O envelhecimento também tem aspetos positivos: Os anos passam, a vida abranda, os pensamentos fluem, revivemos o passado e redescobrimos algumas pasagens da vida. Este pequeno conto estava perdido no baú das memórias. As coisas boas da infãncia e o amor da minha irmã, trouxe à colação a vontade de rabiscar sobre o mesmo.

Abraço