Meditação

CERTEZA DO VIVER

A ilusão dos imortais

Morre no mesmo instante

Em que o tempo enterra ideais

Para guardar em seus anais

O destino cruel das horas mansas.

 

Herdeiros? Onde estamos?

Onde não estamos? A vida

É um sepulcro talhado, é vulto,

Mas quando a sombra aparece

Envolta em retalhos de luz

Tem-se a certeza de que se vive

E doce é o néctar desta sensação.

AUTENTICAÇÃO

Eu me curvo diante deste imenso vazio,

Eu me turvo perante meu olhar arredio

Que me faz singrar hipóteses ao vento

E escalar o escuro sem ressentimento.

 

Eu me tosto pelo sol da manhã cinzenta,

Eu me enrosco onde a saudade se assenta

Dissertando a lápis na solidão que maltrata

O escape felino do beijo cítrico da mulata.

 

Eu me lavo das barbáries do sonho tímido

E me cravo os pregos que me deixam lívido

Sob o calor que apetece o brilho da estrela...

 

INCENSO

Agora cai a água das nuvens,

O solo árido é o cálice que a recebe,

A terra seca então se depura

E sementes alimentam a verve.

 

Bebe-se da umidade um aroma em flor

E em taça de cristal o mel da redenção

Que mitiga a sede e a sacia a fome

Dum mundo que sofre estiagem no coração.

 

No chão fulvo surgem os primeiros brotos

E no augúrio das mentes varre-se o lodo

Da infertilidade que sentenciou os campos...

 

Tempos novos... Há nas árvores o incenso

Ela e a sombra

 
 
A figura no espelho, nebulosa,
Sombra leve, imensamente sombria
Carregando ilusão, nervosa,
Farta de se ver assim; sombra fria.
 
Ela sabia que se via apenas no passado...
Os olhos iludidos, no espelho mergulhando
Recresciam num olhar alucinado
Na sombra triste que ria soluçando.
 
Ela e a sombra estendiam os braços,
Tentavam tocar as pontas dos dedos
Mas na diferença do tempo, cresciam espaços,
Espaços negros cobertos de segredos.
 
O olhar crescia em direcção ao espelho
Tentando ver o presente na imagem fria
Mas o reflexo trazia aquele olhar velho
Da sombra do nada, que nada dizia.
 
Num instante, ela decidiu renascer
E vida à sombra foi concedida;
Aquele olhar velho passou a ver...
Passou a viver, a sombra abatida.
 
Fernanda R. Mesquita
 
 

TRIGONOMETRIA GEOGRÁFICA

Partindo-se do princípio de que a Terra é redonda,

A vida é circunferência e, os seres humanos, raios...

Em círculos concêntricos a respiração é um ensaio

Que produz energia vital liberada em tubos e sondas.

 

Na maquete universal o homem é a experiência maior

Cultivado em seu eixo nos extremos do bem e do mal,

No livre arbítrio há uma senha que o torna infinitesimal

Quando o bom-senso decodifica o que há de melhor...

 

Durante a rotação do orbe os sentimentos são medidos

COEFICIENTE ZERO

Meu equilíbrio facilmente não se desmonta...

 

Futebol, política, religião... temas não incipientes,

Tão caducos que perderam as bengalas da vida...

 

Desequilibrados são os que se regem nesta cartilha,

Desde criança sei que políticos vivem em quadrilhas

E quem discute suas atrocidades não vive, vegeta...

 

Quem se mete a digressões religiosas é fanático,

Estresse que vara as madrugadas de ponta a ponta

E o passional desnutre o raciocínio e se desencontra

PRINCÍPIOS

Nada do que escrevo é em dose homeopática,

A alopatia é parte integrante do meu veneno,

Às vezes vejo tudo grande e o que é pequeno

Se transforma e assume proporções enigmáticas.

 

O mundo me parece ontológico... o que fito

Leva-me a pensar que o homem soterra valores,

Afugenta de si a essência dos verdadeiros amores

E nas figurinhas que troca engana o próprio fisco.

 

Perante o ecletismo da vida há hediondos parasitas

Que difamam o social em suas teias assaz infinitas,

GARIMPEIRO DAS MADRUGADAS

Sinto-me moleque a garimpar ilusões,

A travestir-me de Dom Juan e caçoar raparigas,

Plenamente indiferente ao ribombar das intrigas

E mercenário das palavras que entortam corações.

 

Vejo-me caduco ao recordar tais intrujices

Que fizeram de mim mancebo de mil faces,

Usei a inteligência como símbolo dos disfarces

Que interpretei cabalmente em minha meninice.

 

Os anos deixaram no tempo dissabores profundos

E ainda me rio ao lembrar que fui o vagabundo,

Estertor das madrugadas e lampião das donzelas...

DUAS METADES

Há momentos que sou apenas metade de mim...

 

Talvez línguas desvairadas perguntem:

E a outra metade? Que vem a ser dela?

 

Não sei... Quando vivo uma metade,

A outra simplesmente se esconde, some,

Nem imagino sequer o paradeiro dela...

 

Na verdade, estas duas metades são extremos,

Cada qual tem vida própria, mentes individuais,

É como se fossem estrangeiras, não se entendem,

Nunca se encontram, sobrevivem a distância.

 

Às vezes é trabalhoso adaptar-se aos engenhos

Pages