CANTICO DOS CANTICOS DE SALOMÃO
Para os corações puros tudo é puro.
S. Paulo a Tito.
I
CHEGADA
A SULAMENSE
--Tomára já ter o gosto
De o sentir beijar-me o rosto!
CORO DE VIRGENS
--E onde ha mulher que te exceda?
Só esse collo embebeda.
O aroma que elle exhala,
Nenhum balsamo o iguala.
2.º CORO
--O teu nome, fallar n'elle,
Só fallar n'elle é tão dôce
Como se um oleo nos fosse
Escorrendo pela pelle.
SALOMÃO
--Olha como todas ellas
Te estimam tanto, as donzellas.
A SULAMENSE
--Sou tua, leva-me, vamos.
CORO
--E nós, que te não largamos,
Te iremos correndo atraz
Pelo rasto de perfume,
Que deixas por onde vás,
Das pomadas com que dás
No corpo, como é costume.
A SULAMENSE
--Já el-rei me manda entrar
Para a sala do jantar.
CORO
--Para saltar de alegria
E festejar este dia,
A nós basta-nos lembrar
Que esse teu seio embebeda;
Nem ha mulher que te exceda.
2.º CORO
--Quem te vê seja quem fôr
Fica bebado d'amor.
A SULAMENSE
--Sou trigueira mas formosa,
Moças de Jerusalem!
Senão vêde o pavilhão
Que arma em campo Salomão,
Se ha coisa mais preciosa,
E por fóra a côr que tem;
Vêde as barracas dos moiros,
Por dentro tantos thesoiros,
Por fóra negras tambem.
Não vos dê pois isso pena,
Ter assim a côr morena:
Minha mãi mandou-me pôr,
Por culpa de meus irmãos,
De guarda á vinha, o calor
Queimou-me o rosto e as mãos:
E eu, a vinha, é escusado
Dizer-vos que nem eu tinha
Senão agora o cuidado
De estar a guardar a vinha.
Ah! para que banda vás
Com o gado, meus amores!
E pela folga onde estás!
Bem vês os outros pastores,
E a gente não adivinha.
Eu não hei-de andar atraz
D'esses rebanhos sósinha.
SALOMÃO
--Ah rainha das mulheres!
Olha como tu te enganas,
Que medo tens das cabanas,
Que medo tens dos rebanhos,
Que medo tens dos estranhos?
Não te dê isso cuidado,
Anda por onde quizeres
Tambem guardando o teu gado.
Em te vendo, mesmo só,
Toda a gente se desvia,
Como da cavallaria
Dos carros de Pharaó.
CORO
--Dás no rosto certo ar
D'aquella graça da rola,
Que até encanta, arrebata.
A garganta pódes pôl-a
Ao pé do melhor collar.
2.º CORO
--Um te havemos de nós dar
De oiro, ás pintinhas de prata,
Que é lindo, e has-de gostar.
A SULAMENSE
Já não sei pelo que aguardo
Que estando el-rei a jantar
Lhe não entorno por cima
Esta redoma de nardo
Que é um balsamo de estima.
Mas ha outro mais perfeito,
E com o qual me perfumo:
Eu a myrrha que costumo
Trazer aqui em meu peito,
É mesmo aquelle a quem amo.
Nunca apanhei outro ramo
Nem outro alcanfor colhi
Nas hortas dos arredores
Da cidade de Engaddi.
SALOMÃO
--Como és bella, minha amante!
Terá a pomba esse olhar?
Outro não ha semelhante.
A SULAMENSE
--E quem mais bello e galante
Mais formoso, meus amores!
E mais de se cubiçar?
SALOMÃO
--Vês, o nosso leito é este,
Armado todo de flôres:
E olha o tecto é de cypreste,
Portas de cedro, tambem;
Aqui não entra ninguem.
A SULAMENSE
--Sou a rosa de Sarão,
A açucena do val.
SALOMÃO
--Amada do coração,
Entre as mais és tal e qual
Uma açucena entre espinhos.
A SULAMENSE
--E entre os mais o meu amado
A que ha-de ser comparado?
Vês tu no bosque a maceira?
És assim d'essa maneira.
Por lograr os teus carinhos
E boa sombra ha já muito
Que eu andava a suspirar:
Com effeito sombra e fructo
Nada deixa a desejar.
Elle deu-me do melhor
Que tinha na sua adega;
Mostrando-me assim primeiro
Como faz quem tem amor.
Trazei-me flôres de cheiro,
Que estou como tonta e cega...
Algum pomo, que esmoreço...
Já um braço me elle passa
Pelos hombros e me abraça
Pela cinta... desfalleço...
Ah desfalleço d'amor!
SALOMÃO
--Pela corça e o veado,
Moças de Jerusalem!
Não a acordeis, cuidado!
Deixar dormir o meu bem,
Um somno bem socegado.
II
ENTREVISTA
A SULAMENSE
--Quem é que eu oiço bradando?
Oiço uma voz e por força
Que é a voz d'elle esta voz:
Ah! lá vem além saltando
Montes e valles, nem corça
Nem veado é mais veloz.
Eil-o detraz da parede
Além já da outra banda
E o que elle faz, como elle anda
A vêr no vallado todo
E na cancella se ha modo
De me pôr olho: ora vêde.
SALOMÃO
--Oh minha amada! depressa
Vem vêr o campo, anda, vem:
Mettida em casa, meu bem!
Que demora tua é essa?
Foi o inverno passando,
Até que a chuva acabou:
Veio a herva rebentando,
Revestiu a terra toda,
Chegou o tempo da poda,
Ouviu-se a rola arrulhando,
O figo vem já inchando
E a vinha está já em flôr:
Pelo que estás esperando?
Quando has-de tu, meu amor!
Andar então passeando?
Ouve lá que estamos sós,
E aqui não ha quem nos oiça:
Vês esta fresta? é um gosto
Até pela pedra ensossa
Vêr assomar o teu rosto,
Ouvir essa linda voz.
A SULAMENSE
--Toda em flôr, como está bella!
Mas lá o ter flôr que monta?
Se as boas das raposinhas
A tomam á sua conta,
Depois a uva que é d'ella?
Bons laços se lhe hão-de armar,
Que ellas dão cabo das vinhas
Se ninguem as apanhar.
Tu és meu; e eu tambem
Sou tua, de mais ninguem.
Nós somos como um casal
De corcinhas, com effeito;
Andamos sempre a vêr qual
Guarda ao outro mais respeito
E lhe ha-de ser mais leal.
Logo ali de manhãsinha,
Ou pela fresca, á tardinha,
Quando a corça e o veado
Volta aos valles de Belher,
Cá ficas sendo esperado:
Não te esqueça, haja cuidado,
Vê lá o que has-de fazer.
III
SONHO
A SULAMENSE
--Não sei bem que sonho tive
Esta noite, que acordei
Sobresaltada, e que estive
Ainda apalpando a cama
Á busca de quem me ama
E a quem ama; não achei:
Levantei-me, rodeei
A cidade toda em roda,
Corri a cidade toda,
Busquei tudo, não achei.
Na rua pergunto á ronda:
O meu amante que é d'elle?
Não ha ninguem que responda.
Vou andando; a poucos passos
Vi vir um vulto: é aquelle.
Chega e digo-lhe depois
De o apertar nos meus braços:
Quem se ama como nós dois,
Só em mudando de estado
É que vive descançado.
Anda d'ahi, vamos pois
Ao quarto mesmo onde dorme
Minha mãi que me gerou
(Que eu tua ainda não sou,
Nem tu és meu, meu amigo!)
A pedir a nossos paes
A sua benção, conforme
Costumam fazer os mais,
E é já um costume antigo.
SALOMÃO
--Pela corça e o veado,
Moças de Jerusalem!
Não a acordeis, cuidado,
Deixai dormir o meu bem
Um somno bem socegado.
IV
NOIVADO
CORO
--Oh que mulher tão perfeita
A que vem além andando!
Vem espalhando um perfume
E é tão airosa a andar!
Parece quando se deita
Incenso e myrrha no lume
Que se vai desenrolando
Aquella nuvem no ar.
2.º CORO
--Realmente é de invejar;
Mas haja alguem que se afoite...
Sessenta homens armados
Dos mais desembaraçados
Manda Salomão ficar
De vigia toda a noite.
CORO
--É tudo á satisfação
E gosto de Salomão.
O andor onde elle sai,
De tudo de que é composto,
Cedro do Libano, olhai,
É a coisa mais barata:
Pernas e braços de prata,
De oiro o mais fino o encosto;
Onde põe os pés velludo:
Não fallando em diamantes
E pedras as mais brilhantes
Que lá isso excede a tudo.
2.º CORO
--Além vem já Salomão:
Lá vem elle já coroado
Com a corôa do noivado
Que a mãi lhe poz na cabeça
Pela sua propria mão.
Hoje é o dia fallado:
Moços, moças de Sião!
Assomai-vos já depressa.
SALOMÃO
--Que enlevo, que formosura!
A pomba não tem de certo
No olhar tanta doçura:
E fóra o que anda encoberto.
O cabello, em quantidade
E tamanho, é singular;
E não me lembra senão
Das cabras de Galaad
Que lhes rola pelo chão
Em ellas indo a andar.
Os dentes, em tu abrindo
A tua boca, que lindo!
Nem um rebanho d'ovelhas
Todas brancas e parelhas
Quando, em sendo tosquiadas,
Veem saindo do banho
D'uma em uma, enfileiradas,
E atraz d'ellas, cada uma
Seus dois gemeos d'um tamanho,
Sem ser maninha nenhuma.
Pois a bocca é comparada
A uma fita encarnada.
A voz ouvil-a é um gosto:
Parte a romã pelo meio
Verás as rosas do rosto;
E fóra no que eu receio
Fallar que me não é dado.
O pescoço, pensa a gente,
Em o vendo de collares,
Que é a torre exactamente
De David, n'esses ares,
De baluartes, e toda,
Lá cima, escudos á roda.
Os peitos é um casal
De corcinhas, que o seu pasto
São açucenas do val:
Nada mais timido e casto.
E deitam um cheiro á goma,
Da myrrha mais do incenso,
A ponto que ás vezes penso
Que elles são duas collinas
Por onde aquellas resinas
Espalham aquelle aroma.
És formosa sem senão,
Amada do coração!
E que fazias tu lá
Pelo Libano, pombinha!
Deixa o Libano, anda cá.
Vaes ser coroada rainha
No mais alto d'Amaná
Ou d'Hermão ou de Sanir,
Onde ha leões e onde ha
Leopardos... deves vir.
Trespassou-me o coração
O teu olhar; o cabello
Prendeu-me como um grilhão.
O teu peito, basta vêl-o,
Para embebedar d'amor.
E só o cheiro que exhala
O teu corpo, não ha flôr,
Não ha rosa, não ha cravo
Capaz de cheirar melhor.
A tua bocca é um favo
De doçura quando falla;
A tua lingua, uma sopa
De leite e mel; essa roupa
Cheira a incenso, regala.
Não ha nada comparado:
Agua a mais pura e suave
De fonte fechada á chave,
Não é mais suave e pura.
Esse rosto, essa figura...
E só o bem que tu cheiras!
Não me parece senão
Um jardim todo plantado
De romeiras e maceiras,
Canfora, nardo, assim como
Açafrão, canna de cheiro
Aloes, myrrha e cinnamomo:
O que ha no Libano em fim;
Não ha fruta nem aroma,
Que se ahi não cheire e coma.
És a fonte d'um jardim
Toda pureza e frescura:
Torno d'agua que rebenta
Inda mais viva e mais pura
Lá no Libano, e ninguem
Lhe tem mão nem aguenta
A força com que ella vem.
Fizesse já sul e norte
No meu jardim, de tal sorte
Que alegretes e pomares
Andasse tudo nos ares.
A SULAMENSE
--É natural que tu comas
Da fruta do teu jardim.
SALOMÃO
--E que duvida que sim?
Vamos primeiro aos aromas;
O mel em favo depois
E mais o vinho e o leite.
Hoje é dia de banquete,
Amigos do coração!
É comer-lhe por quem sois
E beber-lhe até mais não.
V
SURPREZA
A SULAMENSE
Estava a dormir... que importa?
Velava o meu coração.
Oiço o meu amado á porta:
--Ah formosa sem senão,
Minha pomba, minha amada!
Trago a cabeça molhada,
E os anneis do meu cabello
Todos escorrendo orvalho,
Estou mais frio que um gelo.
--Dá-me isto agora um trabalho...
Despi-me, lavei os pés,
Estou na cama deitada,
E é uma pena, bem vês,
Vestir-me agora outra vez,
Andar inda levantada.
Vai elle empurra o postigo,
E eu assusto-me de modo
Que, na verdade vos digo,
Tremia-me o corpo todo.
Salto da cama exhalando
Um cheiro delicioso:
Eu tinha-me estado untando
Com um oleo precioso
E inda as mãos me iam pingando.
Abro a porta, eis senão quando
Elle foge de repente...
Eu só de lhe ouvir a falla
Fui ás nuvens de contente.
E em paga de tudo, abala;
Bradei-lhe, não me acudiu,
Vou por essas ruas fóra
Á busca d'elle, até'gora:
Parece que o chão se abriu...
Encontro a ronda, espancou-me;
Um dos da guarda á entrada
Da cidade, esse, roubou-me
A capa onde ia embrulhada.
Peço-vos isto por bem,
Moças de Jerusalem!
Contai tudo ao meu amado,
Que elle é por amor de quem
Estou n'este triste estado.
CORO
--O teu amado... responde,
Formosura sem igual!
Ha tantos onde escolher
Que é necessario um signal.
Qual é o signal por onde
Havemos de o conhecer?
--Eu vos digo: o meu amado,
D'aquellas côres no mundo,
Estou que não ha segundo;
É muito branco e córado.
A cabeça é um thesoiro
Do que ha de mais principal;
Que a sabedoria vale
Mais do que a prata e o oiro.
De negro que é o cabello,
Vêr um corvo, é mesmo vêl-o.
Os olhos, aquelle olhar,
Ha n'elles uma doçura,
Que não sei a que os compare;
Só sendo a um casalinho
De pombas, que estão no ninho,
Todas pureza e candura.
As suas faces rosadas,
Rescendem como um canteiro
D'aquellas plantas de cheiro
De que fazem as pomadas.
A bocca, digo a verdade,
Que a açucena mais pura
Cheia da myrrha melhor
Não apresenta a doçura,
Pureza e suavidade
Das fallas do meu amor.
Aquelles dedos, vereis,
São uns canudos de anneis!
O ventre d'elle é assim
Como um cofre de marfim.
As pernas, de musculosas,
São columnas magestosas
E de marmore inteiriço
Em bases de oiro maciço.
É o Libano em altura,
É como um cedro na matta
A sua bella figura.
É tão suave, tão pura
A sua voz, que arrebata.
Todo elle é singular
E todo de cubiçar.
Eil-o ahi retratado,
Moças de Jerusalem!
E não só o meu amado;
O meu amante tambem.
CORO
--Ah rainha das mulheres!
Se sabes para que banda
Elle iria o teu amigo,
Anda d'ahi, vamos, anda:
Nós imos todas comtigo
Á busca d'elle se queres.
A SULAMENSE
--Elle parece-me a mim
Que ha-de andar no seu jardim,
A apanhar açucenas,
Que é do que elle gosta apenas.
SALOMÃO
--Oh que formosa, meu bem!
Não ha cidade afamada,
Nem Thirsa ou Jerusalem,
Mais bella que a minha amada.
Mettes mais respeito andando,
Que um exercito avançando.
Os olhos faiscam fogo.
Tira de mim essa vista,
Que ao depois fugi eu logo
Porque não ha quem resista.
O cabello, em quantidade
E tamanho, é singular!
E não me lembra senão
Das cabras de Galaad,
Que o arrastam pelo chão,
Em ellas indo a andar.
Os dentes, em tu abrindo
A tua bocca, que lindo!
Nem um rebanho d'ovelhas,
Todas brancas e parelhas,
Ao vir sahindo do banho
D'uma em uma, e cada uma
Seus dois gemeos d'um tamanho,
Sem ser maninha nenhuma.
As faces não ha de certo
Assim casca de romã
De cor tão linda e tão sã.
E fóra o que anda encoberto.
És tão formosa, vê lá,
Que as rainhas são sessenta,
As concubinas oitenta,
Donzellas, quem é que as dá
Todas contadas? ninguem.
Pois e de quantas possuo,
A minha pomba, o meu bem,
A minha mimosa, és tu.
E o mesmo dizia já
Lá em casa tua mãi,
Com tantas filhas que tem.
Quando chegaste, as donzellas,
Concubinas e em summa
As rainhas, todas ellas
Sem excepção de nenhuma,
Gritaram todas á uma:
Viva a rainha das bellas!
VI
PASSEIO
CORO
--Que linda mulher aquella!
Nem a aurora lhe ganha.
A lua não é tão bella
Nem a luz do sol tamanha;
Mette mais vista só ella
Que um exercito em campanha.
A SULAMENSE
--Nunca tive um susto igual!
Ia á horta das nogueiras,
Ia passear ao valle,
Vêr se tinha flôr a vinha
E já romãs as romeiras;
Mas a multidão que vinha
Atraz de mim era tal
Que não vi nada, e tão cedo
Apanho tamanho medo.
CORO
--Oh não fujas, anda cá,
Sulamense! deixa vêr
Belleza como não ha
No mundo nem póde haver.
SALOMÃO
--Arrebata na verdade,
Mas como um canto de guerra,
Porque ao mesmo tempo aterra
Este ar e magestade.
O teu andar, que nobreza!
E tem o pé uma graça
Assim calçado, princeza!
Os joelhos, que perfeitos!
Não ha ourives que faça
Eixos de oiro mais bem feitos.
Umbigo, qual é a taça,
D'estas taças pequeninas
Por onde a gente costuma
Beber bebidas mais finas,
Tão redondinha? Nenhuma.
É o ventre de tal modo
Casto e fecundo, que apenas
Um monte de trigo, todo
Rodeado de açucenas
Me parece haver no mundo
Assim tão casto e fecundo.
O teu seio é um casal
De corcinhas, que o seu pasto
São açucenas do val:
Nada mais timido e casto!
Lembra-me o pescoço a mim,
Uma torre de marfim
E os olhos, esses então
Os dois lagos de Hesebão.
Vês a torre que apparece
Lá no Libano, e que diz
Para Damasco? parece
Na lindeza esse nariz.
A cabeça vêl-a toda
Por cima das mais, é bello,
Como a serra do Carmelo,
Toda collinas á roda.
O cabello é tal e qual
Um grande manto real!
É tudo uma perfeição,
Amada do coração!
Vêr-te é vêr uma parreira
Armada n'uma palmeira;
E lá em cima os teus peitos,
No tamanho e no feitio,
Dois cachos d'uvas perfeitos
Que a parreira produziu.
E eu disse d'esta maneira:
Dois cachos d'uvas tão bellos
Hei-de ir lá cima colhel-os;
Que bem se vê que a doçura
Corresponde á formosura;
E que a tua bocca é pura
E a respiração é sã
Como o cheiro da maçã
Quando se apanha madura.
--Como é suave e me encanta
O que me estás a dizer!
A voz da tua garganta
Embebeda como o vinho,
D'esse que a doçura é tanta
Que se costuma beber
Aos sôrvos, devagarinho.
És só meu e eu tambem
Sou tua, de mais ninguem.
Anda com a tua amada
Morar para o campo, amor!
Iremos de madrugada,
Logo ao romper da manhã,
Em se a gente levantando,
Vêr se a vinha já tem flôr,
Se está em flôr a romã
E se a fruta vai vingando.
Alli é que eu hei-de então
Abrir-te o meu coração.
Estamos na primavera,
A mandrágora já cheira,
E em minha casa, estar lá,
É como estar n'uma horta:
Mesmo ao pé da nossa porta
Temos quanta fruta ha.
E o teu quinhão, meu amado!
Assim do anno passado
Como da que vem agora,
Esse está sempre guardado.
Ouvisse-te eu n'esta hora
Chamar mãi á minha mãi!
Como se tu com effeito
Fosses criado ao seu peito
Assim como eu fui tambem:
Então já eu te beijava
Ás claras e te abraçava
Sem vergonha de ninguem.
Vamos aonde ella dorme,
A pedir a nossos paes
A sua benção, conforme
Costumam fazer os mais,
E depois seja o que fôr
É só mandar, meu amor!
Verás como te hei-de dar
D'um vinho delicioso
E d'um licor precioso,
De romã, que has de gostar.
.........................
Um braço já me elle passa
Pelos hombros... e me abraça
Pela cinta... o meu amado!
--Deixai-a dormir, cuidado,
Moças de Jerusalem!
Deixai dormir o meu bem
Um somno bem socegado.
......................
Messines.