EM PETIZ
Autor: Cesário Verde on Thursday, 17 January 2013
I DE TARDE Mais morta do que viva, a minha companheira Nem força teve em si para soltar um grito; E eu, n'esse tempo, um destro e bravo rapazito, Como um homemzarrão servi-lhe de barreira! Em meio de arvoredo, azenhas e ruinas, Pulavam para a fonte as bezerrinhas brancas; E, têtas a abanar, as mães de largas ancas, Desciam mais atraz, malhadas e turinas. Do seio do logar--casitas com postigos-- Vem-nos o leite. Mas baptisam-n'o primeiro. Leva-o, de madrugada, em bilhas, o leiteiro, Cujo pregão vos tira ao vosso somno, amigos! Nós davamos, os dois, um giro pelo valle: Varzeas, povoações, pégos, silencios vastos! E os fartos animaes, ao recolher dos pastos, Roçavam pelo teu «costume de percale». Já não receias tu essa vaquita preta, Que eu segurei, prendi por um chavelhoe? Juro Que estavas a tremer, cosida com o muro, Hombros em pé, medrosa, e fina, de luneta! II OS IRMÃOSINHOS Pois eu, que no deserto dos caminhos, Por ti me expunha immenso, contra as vaccas; Eu, que apartava as mansas das velhacas, Fugia com terror dos pobresinhos! Vejo-os no pateo, ainda! Ainda os ouço! Os velhos, que nos rezam padre-nossos; Os mandriões que rosnam, altos, grossos; E os cegos que se apoiam sobre o moço. Ah! Os ceguinhos com a côr dos barros, Ou que a poeira no suor mascarra, Chegam das feiras a tocar guitarra, Rolam os olhos como dois escarros! E os pobres mettem medo! Os de marmita, Para forrar, por anno, alguns patacos, Entrapam-se nas mantas com buracos, Choramingando, a voz rachada, afflicta. Outros pedincham pelas cinco chagas; E no poial, tirando as ligaduras, Mostram as pernas putridas, maduras, Com que se arrastam pelas azinhagas! Querem viver! E picam-se nos cardos; Correm as villas; sobem os outeiros; E ás horas de calor, nos esterqueiros, De roda d'elles zumbem os moscardos. Aos sabbados, os monstros, que eu lamento, Batiam ao portão com seus cajados; E um aleijado com os pés quadrados, Pedia-nos de cima de um jumento. O resmungão! Que barbas! Que saccolas! Cheirava a migas, a bafio, a arrotos; Dormia as noutes por telheiros rotos, E sustentava o burro a pão d'esmolas. * * * * * Ó minha loura e doce como um bolo! Affavel hospeda na nossa casa, Logo que a torrida cidade abraza, Como um enorme fôrno de tijolo! Tu visitavas, esmoler, garrida, Umas creanças n'um casal queimado; E eu, pela estrada, espicaçava o gado, N'uma attitude esperta e decidida. Por lobishomens, por papões, por bruxas, Nunca soffremos o menor receio. Temieis vós, porém, o meu aceio, Mendigasitas sordidas, gorduchas! Vicios, sezões, epidemias, furtos, De certo, fermentavam entre lixos; Que podridão cobria aquelles bichos! E que luar nos teus fatinhos curtos! * * * * * Sei de uma pobre, apenas, sem desleixos, Ruça, descalça, a trote nos atalhos, E que lavava o corpo e os seus retalhos No rio, ao pé dos choupos e dos freixos. E a douda a quem chamavam a «Ratada» E que fallava só! Que antipathia! E se com ella a malta contendia, Quanta indecencia! Quanta palavrada! Uns operarios, n'estes descampados, Tambem surdiam, de chapeu de côco, Dizendo-se, de olhar rebelde e louco, Artistas despedidos, desgraçados. Muitos! E um bebedo--o Camões--que fôra Rico, e morreu a mendigar, zarolho, Com uma pala verde sobre um olho! Tivera ovelhas, bois, mulher, lavoura. E o resto? Bandos de selvagensinhos: Um nú que se gabava de maroto; Um, que cortada a mão, coçava o coto, E os bons que nos tratavam por padrinhos. Pediam fatos, botas, cobertores! Outro jogava bem o pau, e vinha Chorar, humilde, junto da coxinha! «Cinco réisinhos!... Nobres bemfeitores!... E quando alguns ficavam nos palheiros, E de manhã catavam os piolhos: Emquanto o sol batia nos restolhos E os nossos cães ladravam, resingueiros! Hoje entristeço. Lembro-me dos coxos, Dos surdos, dos manhosos, dos manetas. Sulcavam as calçadas, de muletas; Cantavam, no pomar, os pintarroxos! III HISTORIAS Scismatico, doente, azedo, apoquentado, Eu agourava o crime, as facas, a enxovia, Assim que um besuntão dos taes se apercebia Da minha blusa azul e branca, de riscado. Minaveis, ao serão, a cabecita loira, Com contos de provincia, ingenuas creaditas: Quadrilhas assaltando as quintas mais bonitas, E pondo a gente fina, em postas, de salmoira! Na noite velha, a mim, como tições ardendo, Fitavam-me os olhões pesados das ciganas; Deitavam-n'os o fogo aos predios e arribanas; Cercava-me um incendio ensanguentado, horrendo. E eu que era um cavallão, eu que fazia pinos, Eu que jogava a pedra, eu que corria tanto; Sonhava que os ladrões--homens de quem m'espanto Roubavam para azeite a carne dos meninos! E protegia-te eu, n'aquelle outomno brando, Mal tu sentias, entre as serras esmoitadas, Gritos de maioraes, mugidos de boiadas, Branca de susto, meiga e miope, estacando!
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