*Antonio*

Que noite de inverno! Que frio, que frio!
    Gelou meu carvão:
Mas boto-o á lareira, tal qual pelo estio,
    Faz sol de verão!

        Nasci, n'um Reino d'Oiro e flores
        Á beira-mar.

Ó velha Carlota, tivesse-te ao lado,
    Contavas-me historias:
Assim... desenterro, do val do passado,
    As minhas Memorias.

        Sou neto de Navegadores,
        Heroes, Lobos d'agoa, Senhores
        Da India, d'Aquém e d'Além-mar!

Moreno coveiro, tocando viola,
    A rir e a cantar!
Empresta, bom homem, a tua sachola,
    Eu quero cavar:

        E o vento mia! e o vento mia!
        Que irà no mar!

Erguei-vos, defuntas! da tumba que alveja
    Qual Lua, a distancia!
Vizões enterradas no adro da Igreja,
    Branquinha, da Infancia...

        Que noite! ó minha Irmã Maria,
        Accende um cyrio à Virgem Pia,
        Pelos que andam no alto mar...

Lá vem a Carlota que embala uma aurora
    Nos braços, e diz:
«Meu lindo menino, que Nossa Senhora
    O faça feliz!»

        Ao mundo vim, em terça-feira,
        Um sino ouvia-se dobrar!

E Antonio crescendo, sãosinho e perfeito,
    Feliz que vivia!
(E a Dor, que morava com elle no peito,
    Com elle crescia...)

        Vim a subir pela ladeira
        E, n'uma certa terça-feira,
        Estive jà p'ra me matar...

Mas foi a uma festa, vestido de anjinho,
    Que fado cruel!
E a Antonio calhou-lhe levar, coitadinho!
    A _Esponja do Fel_...

        Ides gelar, agoas dos montes!
        Ides gelar!

A Tia Delphina, velhinha tão pura,
    Dormia a meu lado
E sempre rezava por minha ventura...
    E sou desgraçado!

        Agoas do rio! agoas das fontes!
        Cantigas d'agoa pelos monles,
        Que sois como amas a cantar...

E eu ia ás novenas, em tardes de Maio,
    Pedir ao Senhor:
E, ouvindo esses cantos, tremia em desmaio,
    Mudava de cor!

        Passam na rua os estudantes
        A vadrulhar...

E a Mãe-Madrinha, do tempo da guerra
    A mail-os francezes,
Quando ia ao confesso, á ermida da serra,
    Levava-me, ás vezes.

        Assim como elles era eu d'antes!
        Meus camaradas! estudantes!
        Deixae o Poeta trabalhar...

Santinho como ia, santinho voltava:
    Peccados? Nem um!
E a instancias do padre dizia (e chorava):
    «Não tenho nenhum...»

        Ó Job, coberto de gangrenas,
        Meu avatar!

As noites, rezava (e rezo ainda agora)
    Ao pé da lareira.
(A chuva gemente caia lá fóra,
    Fervia a chaleira...)

        Conservo as mesmas tuas penas,
        Mais tuas chagas e gangrenas,
        Que não me farto de coçar!

--Que Deus se amercie das almas do Inferno!
    --Amen! Oxalá...
E o moço rosnava, tranzido de inverno:
    --Que bom lá está!

        E a neve cae, como farinha,
        Là d'esse moinho a moer, no Ar:

O sino da Igreja tocava, á tardinha:
    Que tristes seus dobres!
Era a hora em que eu ia provar, á cozinha,
    O caldo dos pobres...

        Ó bom Moleiro, cautellinha!
        Não desperdices a farinha
        Que tanto custa a germinar...

Ó velhas criadas! na roca fiando,
    Nos lentos serões...
Corujas piando, _Farrusca_ ladrando
    Com medo aos ladrões!

        Andaes, à neve, sem sapatos,
        Vos que nâo tendes que calçar!

O Zé do Telhado morara, alli perto:
    A triste viuva
A nossa caza ia pedir, era certo,
    Em noites de chuva...

        Corpos au léu, vesti meus fatos!
        Pés nus! levae esses sapatos...
        Basta-me um par.

Ó feira das uvas! em tardes de calma...
    (O tempo voou!)
Pediam-me os pobres «esmola pela alma
    Que Deus lhe levou!»

        Quando eu morrer, hirto da magoa.
        Deitem-me ao mar!

E havias-os com gotta, e havia-os herpeticos,
    Mostrando a gangrena!
E mais, e ceguinhos, mas era dos ethicos
    Que eu tinha mais pena...

        Irei indo de fragua, em fragua,
        Até que, emfim, desfeito em agoa,
        Hei-de fazer parte do mar!

Chegou uma carta tarjada: a estampilha
    Bastou-me enxergar...
Coitados d'aquelles que perdem a filha,
    Tão longe do lar!

        No Panthéon, tragico, o sino
        Dà meia-noite, devagar:

Ó tardes de outomno, com fontes carpindo
    Entre herva sedenta...
Os cravos a abrirem, a lua aspergindo
    Luar, agoa-benta...

        É o Victor, outra vez menino,
        A compor um alexandrino,
        Pelos seus dedos a contar!

Ao dar meia-noite no _cuco_ da sala,
    Batiam: «Truz! truz!»
E o Avô que dormia, quietinho na valla,
    Entrava, Jezus!

        Que olhos tristes tem meu vizinho!
        Ve-me comer e poe-se a ougar:

Nas sachas de Junho, ninguem se batia
    Com nosso cazeiro:
Que espanto, pudéra! se da freguezia
    Elle era o coveiro...

        Sobe ao meu quarto, bom velhinho!
        Que eu dou-te um copo d'este vinho
        E metade do meu jantar.

Morria o mais velho dos nossos criados,
    Que pena! que dó!
Pedi-lhe, tremendo, fizesse recados
    Á alminha da Avó...

        Bairro-Latino! dorme um pouco!
        Faze, meu Deus, por socegar...

Ó banzas dos rios, gemendo descantes
    E fados do mundo!
Ó agoas fallantes! ó rios andantes,
    Com eiras no fundo!...

        Calla-te, Georges! estàs jà rouco!
        Deixa-me era paz! Calla-te, louco,
        Ó boulevard!

Trepava ás figueiras cheiinhas de figos
    Como astros no céu:
E em baixo, aparando-os, erguiam mendigos
    O roto chapéu...

        Boas almas, vinde ao meu seio!
        Espiritos errantes no Ar!

Ó lua encantada no fundo do poço,
    Moirinha da magoa!
O balde descia, chymeras de moço!
    Trazia só agoa...

        Sou médio: evoco-os, noite em meio,
        Vos não acreditaes, eu sei-o...
        Deixal-o não acreditar.

Meus versos primeiros estão no Adro, ainda,
    Escriptos na cal:
Cantavam Aquella que é a roza mais linda
    Que tem Portugal!

        Se eu vos podesse dar a vista,
        Ceguinhos que ides a tactear...

A lua é ceifeira que, ás noites, ensaia
    Bailados na terra...
Luar é caleiro que, pallido, caia
    Ermidas da serra...

        Quanto essa sorte me contrista!
        Mas ah! mais vale não ter vista,
        Que um mundo d'estes ter d'olhar.

O conde de Furnas sabia o Horacio,
    Tin-tin, por tin-tin!
E dava-me, á noite, passeiando em palacio,
    Licção de latim.

        A Morte, agora, é a minha ama...
        Que bem que sabe acalentar!

E entrei para a escola, meu Deus! quem me dera
    N'essa hora da vida!
Uzava uma bluza, que linda que era!
    E trança comprida...

        Á noite, quando estou na cama:
        «Nana, nana! Que a tua ama
        Vem jà, não tarda! foi cavar...»

Os outros rapazes furtavam os ninhos
    Com ovos a abrir;
Mas eu mercava-lhes os bons passarinhos,
    Deixava-os fugir...

        Camões! ó lua do mar-bravo!
        Vem-me ajudar...

Os prezos, ás grades da triste cadeia,
    Olhavam-me em face!
E eu ia á pouzada do guarda da aldeia
    Pedir que os soltasse...

        Tenho o nome do teu escravo;
        Em nome d'elle e do mar-bravo,
        Vem-me ajudar!

E quando um malvado moia a chibata
    Um filho, ou assim,
Corria a seus braços, gritando: «Não bata!
    Bata antes em mim...»

        E o vento geme! e o vento geme!
        Que irà no mar!

E quando dobrava na terra algum sino
    Por velho, ou donzella,
A meu Pae rogavam «deixasse o menino
    Pegar a uma vela...»

        Lobos d'agoa, que ides ao leme,
        Tende cuidado! a lancha treme...
        Orçar! orçar!

Enterros de anjinhos! Oh dores que trazem
    Aos tristes cazaes!
Ha doces, ha vinho, senhores que fazem
    Saudes aos paes...

        Meu velho cão, meu grande amigo,
        Porque me estàs assim a olhar?

A Prima doidinha por montes andava,
    Á lua, em vigilia!
Olhae-me, doutores! ha doidos, ha lava,
    Na minha Familia...

        Quando ou choro, choras commigo
        Meu velho cão! és meu amigo...
        Tu nunca me has-de abandonar.

E os annos correram, e os annos cresceram,
    Com elles cresci:
Os sonhos que tinha, meus sonhos... morreram,
    Só eu não morri...

        Frades do Monte de Crestello!
        Abri-me as portas! quero entrar...

Fui vendo que as almas não eram no mundo
    Singellas e francas:
A minha que o era ficou, n'um segundo,
    Cheiinha de brancas!

        Cortae-me as barbas e o cabello,
        Vesti-me esse habito singello...
        Deixae-me entrar!

Fiquei pobrezinho, fiquei sem chymeras,
    Tal qual Pedro-Sem,
Que teve fragatas, que teve galeras,
    Que teve e não tem...

        Moço Luziada! criança!
        Porque estàs trisle, a meditar?

Vieram as rugas, caiu-me o cabello
    Qual musgo da rocha...
Fiquei para sempre sequinho, amarello,
    Que nem uma tocha!

        Ves teu paiz sem esperança,
        Que todo allue, à semelhança
        Dos castellos que ergueste no Ar?

E a velha Carlota, revendo-me agora
    Tão pallido, diz:
«Meu pobre menino! que Nossa Senhora
    Fez tão infeliz...»

Pariz, 1891.

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