CAPITULO I - Morrer e Renascer Poeta

I - MORRER E RENASCER POETA

“MORRER”

Naquela manhã de 9 de outubro de 1940, encontrava-me na minha casa de Madrid, quando recebi o fatídico telegrama com a notícia que Juan Garcia tinha falecido na noite anterior. Apanhei de imediato o comboio das 11 horas que saía de Madrid rumo a Toledo; eram 4 horas de viagem para percorrer os 84 km, mas, mau grado a distancia e a angústia por companhia, chegaria a tempo de despedir-me do meu amigo, pois o funeral estava marcado para as 17 horas.
Espanha estava a ferro e fogo, fazia pouco mais que um ano, que a insurreição nacionalista liderada por Francisco Franco, apoiado pela Alemanha e Itália tinha triunfado. Todavia o país estava em recessão aguda, a fome fazia-se sentir em todos os quadrantes e a esperança estava cada vez mais mitigada, com os últimos acontecimentos internacionais, cujas notícias referiam que a Alemanha invadira a Polónia e a guerra começava a alastrar por toda a Europa.
Quando entrei no comboio o meu pensamento desfilou, pelos bons e menos bons momentos, que tinha passado com Juan Garcia. Entre sorrisos e lágrimas silenciosas arrancadas pelas recordações, fui escrevendo um pequeno texto, algumas palavras, para aquela hora marcante, em que o apelo faz sentir a necessidade de acrescentar algo mais à presença física e espiritual.

A noite tinha sido chuvosa e durante o dia continuava a chover mansamente de forma ininterrupta, como se o céu obedecesse à missão disciplinada de chorar sobre a terra o desaparecimento do poeta. São bátegas doces, caindo em cordas verticais, inconsolável e morosa como um chorar a fio, na solenidade do ato em que o corpo descia à terra. As poucas pessoas que acompanharam o funeral foram silenciosamente saindo; apenas fiquei eu, como se fosse uma estátua de pedra fria, uma peça integrante do cenário lúgubre.
Tinha chegado o momento de proceder ao meu ritual de despedida, tirei do bolso do casaco a folha de papel que tinha preparado na viagem e comecei a ler:
Homem nobre, tu que albergaste no teu corpo a alma poeta, escuta os sons roucos, das palavras sem nexo, nesta escrita de loucos, deste poema corrido; onde a perseverança é nublada por pensamentos vestidos de negro, decantados na desilusão da espera e trajados em crepúsculos pálidos da incerteza.
As frases dos teus poemas jazem vencidas caídas, varridas, para esse abismo profundo de solidão. E a sorte, essa, amarga e profana até na morte, cai em mergulho profundo, asfixiando-se por entre ais e lamentos numa mortalha lírica coberta por aromas de cedro e de rosa. Nada mais resta, apenas perpetua o barulho rasgado do silêncio, dilacerado por sons imaginários, que bramindo corre no rio do teu EU, envolvendo lentamente a tua alma numa monotonia latente de escrita, sem fio de versos, num destempero da palavra, em redutora prosa.
Poema escrito no luto, inspirado num tempo devoluto e sem sabor, de traje negro te venera; por ti, declamo estes versos à minha dor.

Acabo de ler, prendo a folha escrita a um lírio branco e coloco na terra molhada da campa. Quando me volto, a dois metros de mim está uma senhora de porte altivo, aparentava ter uns 25 anos; morena de olhos esverdeados vestia um fato azul-escuro, a saia comprida evidenciava uns tornozelos bem torneados, deixando antever belas pernas compridas, uma camisa branca de textura fina por baixo do casaco, relevava o peito. A cabeça encontrava-se coberta por um pequeno chapéu e o rosto atendendo à cerimónia fúnebre, estava parcialmente resguardado por um pequeno véu de renda.
- Desculpe Senhora. Pensei que estava sozinho. É familiar do poeta?
- Sou e não sou. É difícil de explicar. Mas conhecia-o bem e apreciava o que escrevia.
- Sabe, eu e o Juan Garcia éramos como irmãos. Ele foi um homem de causas, um Ser extraordinário que se pautou por valores de solidariedade e justiça. Ao longo da sua curta vida, sempre procurou viver com ética e amor.
- Meu caro Senhor, para ele que pautou a vida com ética e amor, a morte é apenas o limite de um ciclo. Ela ensina, mostra o quanto somos frágeis e explicita a efemeridade da vida. Para tudo há o seu tempo. Há tempo para nascer e tempo para morrer. A morte não é o fim, mas o momento do recomeço.
- É verdade! É o que dizem os dogmas, que a vida não acaba no túmulo e que Deus é eterno, infinito, omnisciente, omnipresente, omnipotente, etc.., o homem religioso acredita sem acreditar; o cético diz que duvida, sem duvidar. Ambos têm de comum a negação da evidência, fenómeno fatal para o espírito. Desculpe a ironia, é a minha veia anarquista a falar: Deus é o que me falta para compreende-lo.
- Não vou discutir consigo, dogmas ou questões correlacionadas com Deus.
- Peço novamente desculpa se fui grosseiro com a minha ironia. Mas o meu estado de alma é um misto de tristeza e revolta, hoje quando cheguei a Toledo, encontrava-se na estação um inspetor da polícia à minha espera. Disse-me que o meu amigo me tinha deixado as poucas coisas que possuía; uns livros manuscritos, os quais, me seriam entregues mais tarde, pois, eram alvo de análise, em virtude de poderem conter artigos ou leituras políticas subversivas. Deu-me os pêsames e seguiu rua abaixo. Se há momentos de dor que as condolências enfurecem, aquele foi um deles.
- Compreendo a sua revolta, mesmo no bom sentido: consolar não é mais que apagar no coração o sentimento de pesar, sem, entretanto destruir-lhe a causa.
- Não sei se a Senhora teve conhecimento, o Juan Garcia esteve preso algumas vezes, pois não se inibia de escrever o que pensava. Os seus artigos e algumas peças de teatro apontavam os podres da sociedade. Por isso, tudo o que escrevia era alvo da censura e minuciosamente inspecionado pelos esbirros dos caciques de Toledo.
- Caro Senhor, em todo lado haverá circunstâncias injuriosas e pessoas grotescas. Homens que se gostam de ouvir, murmurando em segredo pérfidas formas de denegrir. Pedantes na sua forma de falar, julgam-se deuses da razão, donos de todas as importâncias. São depravados do verbo que nos seus gorjeios pitorescos, estão devorando as palavras em farta verborreia: uma a uma, temperadas na ironia, regadas a copos do ópio das gramáticas com a sua espuma letal, transbordando vicio, deceção e sarcasmo pelo chão. Verso a verso, prosa a prosa, vão tragando palavras e letras que são servidas ao vivo, aos antropófagos das mil tretas, em bruta e sádica orgia verbal, ou não fossem os doutos da opinião.
Exterminam versos, capitulam frases, censuram e condenam sem julgamento o que o poeta escreve e chora nas tardes. Eles não sabem, que a poesia é o mágico sentir, um fluir que habita e percorre o sentimento. É a inspiração que chega de mansinho, pedindo para ficar: pedindo, para não partir.
- Os poetas pela sua sensibilidade, sempre estiveram identificados com as causas, os seus poemas foram arma de arremesso contra os desaforos sociais. Por isso muitos foram perseguidos, porque constituíam um perigo para os interesses instalados.
- Infelizmente quando o mal se integra nos costumes, perde o caráter vergonhoso, desonroso, e a consciência não sofre com isso se não um mal-estar quase insensível, ao qual rapidamente se habitua.
- O Juan Garcia era um poeta verdadeiro, subordinava as palavras ao pensamento, pois a originalidade literária não é mais que a verdade imutável animada pela variedade dos sentimentos humanos.
- Um dia ele será reconhecido e os seus poemas serão lidos por aqueles que são sensíveis e amantes da poesia.
- Talvez …. Senhora, talvez... Mas sabe porque nós somos sempre mais justos e mais generosos para com os mortos? A razão é simples! Para com eles, já não há deveres. No entanto, eu costumo dizer, que a esperança é uma antecipação da felicidade sonhada. E se por ventura isso acontecer, o Juan Garcia, não estará cá para ver e sentir esse reconhecimento.
- Vai estar sim! Não com esse nome, não com o corpo e com o rosto que o conheceu. Mas vai estar, com a mesma Luz, que certamente será mais intensa. Agora tenho que partir, obrigada por ter vindo, obrigada pelas suas palavras e por estar presente até ao fim.
- Espere Senhora! Porque me agradece, por favor diga-me quem é?
Ela parou. Voltou-se lentamente, sorriu; um sorriso triste, complacente, que lhe iluminou o rosto. E na sua voz calma, retorquiu:
- Eu sou a Musa, mãe de todos os poetas. Vim prestar a minha homenagem à poesia, no corpo de um poeta morto, esperando em breve ver, o renascer do “Cavaleiro de Letras Guardador de Sonhos”.

(Sem o sonho, e sem o amor, o céu deixará de ter cor e o dia será noite, porque a alma seria mais escura que as noites sem lua)

“RENASCER”

(Aqui estou em mais um sereno despertar de vida. Espírito erigido livre do medo, que no vórtice da reencarnação, mergulha no desconhecido)

Percorro as linhas da vida,
Como um foguete lançado
Em contagem decrescente,
Do desencarne para alma ressurgida.

Prescrevo a retórica do tempo inverso
Neste espaço sideral isolado.
Órbita de uma estrela penitente,
Que tremula na vastidão do universo.

(Para lá de todo o tempo, existe uma concreta evolução; pula e avança na dimensão sublime de um sonho adormecido)

Sou espírito erigido livre do medo,
Num túnel que escorre o pó sublime,
Visão assimétrica que me sacia e redime,
Luz redentora que reencarna mais cedo.

O tempo foge! Trespasso a dor desigual.
Me predigo num impulso fulgente,
Fragrância do desejo em alma ardente,
Mística linguagem do poder Universal.

(Símile de outrora, quem serei agora? Invoco a Musa para ser menino sonhador: deslumbrado, rendido)

Vida. Sou quem esperas? Voltei renascido.

Género: 

Comentários

Uma obra prima!   Adorei  parabéns amigo

bjs

Este (Morrer e Renascer Poeta), é 1º Capitulo (o capitulo mais pequeno, por isso deu para colocar aqui), do meu último livro "Cavaleiro de Letras Guardador de Sonhos".

O livro já está disponivel  a 1ª apresentação/oficial está marcada para dia 11 de Março. Os críticos teceram elogios ao mesmo, segundo eles; os capitulos (6) vão em crescente ao nível de qualidade.

É um livro composto por textos e poemas. Os outros textos são grandes e não dá para colocar.

Beijinho,

João Murty

 

 

Tenho certeza caro amigo que será um sucesso, pois a mostra do primeiro capítulo, já é uma amostra.   Como amiga e admiradora, sei virá recompensa

pelo seu lindo trabalho.      Abraço de amiga 

 

Que bom! Se vós renascestes viverás para sempre".

Madalena Cordeiro

Abraços!

Beijinhos!

Vou tentar colocar aqui, alguns fragmentos dos capitulos do livro. Cada capitulo é composto por texto e poemas (média;9 poemas por texto).
Beijo

Magnifico e emocionante texto caro João

Grato fico pela partilha

Abraço fraterno

FC

Tenho pena de não colocar os restantes textos (são extensos).

Um abraço

João Murty