CARTA

    Maria! vêr-te á porta a fazer meia,
    Olhando para mim de vez em quando,
    É o que n'esta vida me recreia.

    Acordo até de noite suspirando
    Por que rompa a manhã e tenha o gosto
    De te vêr já tão cedo trabalhando.

    Desde pela manhã até sol-posto
    Que não tens de descanço um só momento;
    Por isso tens tão bella côr de rosto.

    E eu pallido, Maria! O pensamento
    Não é trabalho que nos dê saude,
    Esta imaginação é um tormento.

    Que bello tempo aquelle em quanto pude
    Levar, como tu levas, todo o dia
    N'essa vida chamada ingrata e rude!

    Nunca soube o que foi melancolia,
    Nunca provei as lagrimas salgadas
    Com que a nossa alma as penas allivia;

    Andava sim por essas cumiadas
    Ao sol, á chuva, muita vez, sósinho,
    Vendo os valles, das rochas escarpadas;

    Descendo pelo córrego estreitinho,
    De pontal em pontal, cortando o matto,
    Pelas chapadas, fóra de caminho;

    Mas não era que já o teu retrato
    Me andasse a mim no coração impresso,
    Onde hoje o trago no maior recato,

    E um desengano teu que não mereço
    Me tivesse tirado a fé tão dôce
    D'alcançar algum dia o que appeteço.

    Não foi, não, a paixão que assim me trouxe
    Tão erradio a mim, digo a verdade
    E nem eu te negava se assim fosse.

    É que a gente na sua mocidade
    Não cabe em si, não pára de contente,
    E assim fui eu na flôr da minha idade.

    Tu eras n'esse tempo simplesmente
    A flôr que vai nascendo e mais valia
    Seres tão tenra ainda e innocente.

    Já esse lindo pé que tens, Maria!
    Esse quadril tão largo, e cinta estreita,
    Me não vinha á idéa noite e dia;

    Esses encontros de mulher perfeita,
    Esse peito redondo e arqueado
    Como o de pomba farta e satisfeita.

    Talvez vivesse então mais socegado,
    Ou já que minha sorte é sempre triste
    Ao menos não andasse enfeitiçado.

    Esse bello pescoço, não existe
    Outro assim torneado: o rosto é lindo
    E a tão meiga expressão ninguem resiste.

    A bocca é tão vermelha que, em te rindo,
    Lembra-me uma romã aberta ao meio
    Quando já de madura está cahindo.

    Esses olhos azues... que olhar! Receio
    E desejo estar sempre a contemplal-o;
    Não ha mais dôce e mais custoso enleio:

    Eu não oiço fallar então, nem fallo
    De enlevado que estou e, juntamente,
    Gemendo e abafando os ais que exhalo.

    Oh nuvem da manhã resplandecente,
    Manto real de sêda delicada,
    Cada fio um grilhão que prende a gente.

    Bem podias, Maria! andar tapada
    Só com o teu cabello, á semelhança
    Do sol em nuvem de manhã doirada.

    É tudo encantador. A gente cança,
    Cança de estar olhando e sempre vendo
    Um novo encanto a cada olhar que lança.

    E se essa linda voz nos sái dizendo
    As mimosas palavras que costuma,
    Sente-se a gente logo derretendo;

    Que além d'um rosto tão perfeito, em summa
    Coube-te em sorte um coração perfeito
    E em ti não ha, Maria! falta alguma.

    Oh que ditoso, alegre e satisfeito
    Não viverá o homem que algum dia
    Sentir pular-te o coração no peito,

    E que em deliciosissima agonia,
    Vendo-te já os olhos desmaiando
    Como desmaia o céo á luz do dia,

    Nas azas da ventura atravessando
    Os espaços d'um extasi ineffavel
    Abraçado comtigo fôr voando
    Lá para onde tudo é bello e estavel!

Messines.

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