CRYSTALISAÇÕES
Autor: Cesário Verde on Wednesday, 9 January 2013
A Bettencourt Rodrigues Faz frio. Mas, depois d'uns dias de aguaceiros, Vibra uma immensa claridade crua. De cocaras, em linha os calceteiros, Com lentidão, terrosos e grosseiros, Calcam de lado a lado a longa rua. Como as elevações seccaram do relento, E o descoberto sol abafa e cria! A frialdade exige o movimento; E as poças d'agua, como em chão vidrento, Reflectem a molhada casaria. Em pé e perna, dando aos rins que a marcha agita, Disseminadas, gritam as peixeiras; Luzem, aquecem na manhã bonita, Uns barracões de gente pobresita. E uns quintalorios velhos com parreiras. Não se ouvem aves; nem o choro d'uma nora! Tomam por outra parte os viandantes; E o ferro e a pedra--que união sonora!-- Retinem alto pelo espaço fóra, Com choques rijos, asperos, cantantes. Bom tempo. E os rapagões, morosos, duros, baços, Cuja columna nunca se endireita, Partem penedos; cruzam-se estilhaços. Pesam enormemente os grossos maços, Com que outros batem a calçada feita. A sua barba agreste! A lã dos seus barretes! Que espessos forros! N'uma das regueiras Acamam-se as japonas, os colletes: E elles descalçam com os picaretes, Que ferem lume sobre pederneiras. E n'esse rude mez, que não consente as flores, Fundêam, como a esquadra em fria paz, As arvores despidas. Sobrias côres! Mastros, enxarcias, vergas! Valladores Atiram terra com as largas pás. Eu julgo-me no Norte, ao frio--o grande agente!-- Carros de mão, que chiam carregados, Conduzem saibro, vagarosamente; Vê se a cidade, mercantil, contente: Madeiras, aguas, multidões, telhados! Negrejam os quintaes, enxuga e alvenaria; Em arco, sem as nuvens fluctuantes, O ceu renova a tinta corredia; E os charcos brilham tanto, que eu diria Ter ante mim lagôas de brilhantes! E engelhem muito embora, os fracos, os tolhidos, Eu tudo encontro alegremente exacto. Lavo, refresco, limpo os meus sentidos. E tangem-me, excitados, sacudidos, O tacto, a vista, o ouvido, o gosto, o olfacto! Pede-me o corpo inteiro esforços na friagem De tão lavada e egual temperatura! Os ares, o caminho, a luz reagem; Cheira-me a fogo, a silex, a ferragem; Sabe-me a campo, a lenha, a agricultura. Mal encarado e negro, um pára emquanto eu passo; Dois assobiam, altas as marretas Possantes, grossas, temperadas d'aço; E um gordo, o mestre, com um ar de ralaço E manso, tira o nivel das valletas. Homens de carga! Assim as bestas vão curvadas! Que vida tão custosa! Que diabo! E os cavadores pousam as enxadas, E cospem nas callosas mãos gretadas, Para que não lhes escorregue o cabo. Povo! No panno cru rasgado das camizas Uma bandeira penso que transluz! Com ella soffres, bebes, agonisas: Listrões de vinho lançam-lhe divisas, E os suspensorios traçam-lhe uma cruz! D'escuro, bruscamente, ao cimo da barroca, Surge um perfil direito que se aguça; E ar matinal de quem sahiu da toca, Uma figura fina, desemboca, Toda abafada n'um casaco á russa. D'onde ella vem! A actriz que tanto comprimento E a quem, á noite na plateia, attraio Os olhos lizos como polimento! Com seu rostinho estreito, friorento, Caminha agora para o seu ensaio. E aos outros eu admiro os dorsos, os costados Como lajões. Os bons trabalhadores! Os filhos das lezirias, dos montados; Os das planicies, altos, aprumados; Os das montanhas, baixos, trepadores! Mas fina de feições, o queixo hostil, distincto, Furtiva a tiritar em suas pelles, Espanta-me a actrizita que hoje pinto, N'este dezembro energico, succinto, E n'estes sitios suburbanos, reles! Como animaes communs, que uma picada esquente, Elles, bovinos, masculos, ossudos, Encaram-n'a sanguinea, brutamente: E ella vacilla, hesita impaciente Sobre as botinhas de tacões agudos. Porém, desempenhando o seu papel na peça, Sem que inda o publico a passagem abra, O demonico arrisca-se, atravessa Covas, entulhos, lamaçaes, depressa, Com seus pésinhos rapidos, de cabra!
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