Cuspir a raiva que agoniza

Sou para o mundo
uma desorganização que se organiza.
Enquanto me acamo,
pedaço após pedaço,
num caminho mentiroso,
cuspo a raiva que me agoniza,
enquanto vivo a sonhar e escrevo
a vida que idealizo viver...

Acendo-me
e desligo-me do mundo.
Já não consigo viver sem me desligar...
Tem dias que passo dias desligado
e só entrei para me perder um bocadinho...

E, de vez em quando, lá me chama, ao real,
a minha desorganização,
o meu caminho mentiroso
e a raiva que lhe sinto...

Ah, pudesse, eu, ser só o irreal...
Pudesse, eu, ir, perdendo-me,
enquanto me encontrava com o meu eu desligado,
num despertador fumacento,
que, me despertaria, apenas o suficiente,
para fumar a vida numa aflição,
com medo de não me poder voltar a desligar.

Mas não posso, vivo preso ao real,
e desligo-me todos os dias,
porque tenho medo de me desligar dos dias todos...
Deixo, como se pudesse não deixar,
que o vento do tempo me sopre,
escondendo o cigarro -
para que não me veja fumar -
e, à semelhança do vento,
deixo que o tempo passe por mim
e me despenteie
com as coisas que leva
para nunca mais trazer...

Sou uma alma morta
dentro de um corpo vivo,
aflito por se afirmar
e travado por um infinito mar de nada;
Sou o quase, que nunca chega lá
e sou-o, perante o mais rápido caracol...
O caracol que me trará, o cabelo branco, as rugas e a morte.
O caracol que depois de passar,
deixa um perene rasto fresco,
como se tivesse sido, sempre, ontem que passou.
O caracol que não me leva para ti.

O seu rasto é tudo o que tenho,
eu, que sou uma voz
dentro de uma cabeça,
desconhecendo a razão porque penso.
Eu, que sou uma voz
que contempla o mistério
de ter nascido esta
e não outra...

Eu, que sou uma voz igual a tantas outras,
[neste momento a tua]
sem qualquer poder sobre sí,
e vivo condenado a morrer -
enquanto me organizo -,
pretendo deixar estes versos
para que a minha alma, já viva,
assista ao enterro do meu corpo
e possa viver
entre as palavras, interrogações e exclamações
de quem me admira
e, até, quem sabe,
de quem é obrigado a admirar-me.

Talvez sendo eterno te leve comigo...
Talvez sendo eterno
tu encontres em mim a força que eu encontrei noutro,
que também é eterno.

Talvez lendo-me,
escrevas...

Talvez possas, também,
pedir, em versos agonizantes - da raiva de viver-,
que a tua alma seja imortal,
enquanto cospes, também pela escrita,
os males que a queimam,
em palavras que inundam esse incêndio
como um oceano de alívio.

Se não puderes mais nenhum talvez,
sabe que podes sonhar
e ser em sonho
tudo o que sonhas ser.

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