A DONZELLA E O MUSGO

    Um dia, não sei que eu tinha...
    Uma tristeza tamanha!
    E lembra-me ir á montanha,
    Que temos aqui vizinha,
    Onde em tempo me entretinha
    Horas e horas sósinha
    Quando ainda se não estranha
    Que n'uma teia de aranha
    Se prenda uma innocentinha,
    Ou atraz d'uma avesinha
    Se cance a vêr se a apanha.

    Depois é que o mundo falla
    E se mette com a vida
    De quem ás vezes se cala
    Por ser mais bem procedida.
    Que esta gente que faz gala
    Em coisa, que vê, contal-a,
    E sendo mal permittida
    Inda em cima acrescental-a,
    Teem a lingua comprida
    E bem deviam cortal-a.

    Vou pelo córrego acima,
    Subo á ponta do penedo;
    Que a vida só quem a estima
    É que da morte tem medo.
    A mesma tristeza anima
    A encarar a pé quedo
    A morte que se aproxima
    A tirar-nos do degredo,
    Que inda a gente se lastima
    De não acabar mais cedo.

    E alli sósinha chorando
    Me lembrava, ora a ventura
    Da minha infancia, inda quando
    Levava os dias brincando;
    Ora a desgraça futura,
    Que me estava annunciando
    Não sei se a minha amargura,
    Se uma nuvem, grande e escura,
    Que se ia no ar formando
    E vinha já avançando,
    Como que á minha procura.

    E ainda o pranto corria
    E o cabello me batia
    No rosto, que me doía,
    Tal era a força do vento;
    Já tudo tão pardacento
    A nevoa e chuva fazia
    Que eu olhava, mas dizia:
    É nuvem ou penedia
    Aquelle vulto cinzento?
    O mar brilhante algum dia
    Como prata luzidia
    Já ninguem o distinguia
    Da terra e do firmamento:
    Uivar só é que se ouvia,
    Mas uivar sem sentimento;
    E como em grande tormento
    Se desvaira a phantasia:
    --Fosse eu mar, disse; valia
    Mais ser coisa bruta e fria,
    Como a rocha onde me sento.

    Faz um trovão no momento
    Que soltava esta heresia;
    E áquella rouca harmonia
    Occorre-me um pensamento,
    Que me dá uma pancada
    O coração de tal modo,
    Como se o rochedo todo
    Desandasse na chapada.

    Era a voz da consciencia
    Que me accusava do crime
    De negar á Providencia
    A razão com que me opprime.
    Peço perdão, commovi-me
    E n'um extasi sublime
    Lagrimas de penitencia,
    Como um balsamo, uma essencia,
    Purificam-me e senti-me
    Com uma nova existencia.

    Ólho; as nuvens esvaíam-se:
    Os roncos do mar ouviam-se,
    Mas já mais de espaço a espaço.
    O sol ainda tão baço,
    De luz tão pouco brilhante,
    Que se media a compasso
    Como a cara d'um gigante,
    Descobre-se e resplandece!
    Ao longe o mar apparece;
    E tudo, mar, terra e céos
    Tão formoso me parece,
    Como se agora tivesse
    Sahido das mãos de Deus!

    No rochedo onde descança
    Meu corpo desfallecido,
    O verde musgo, vestido
    Sempre da côr da esperança,
    Agora reverdecido,
    Me ensina a ter confiança
    N'esse que do céo nos lança
    Em dia tempestuoso,
    Só para nosso repouso
    O arco da alliança.

    Pobre musgo, descuidado,
    Sem olhos para chorar,
    Sem poder alliviar
    Com seu pranto um desgraçado,
    Consolar-se e consolar!
    Fallas mais a meu agrado
    Que o livro mais afamado
    D'esses livros, que em lugar
    De nos dar consolação,
    Nos fazem cahir no chão
    Um pranto mal empregado,
    E inda mais amargurado
    Nos deixam o coração.

    Colhi-o, pul-o no seio,
    E é hoje o livro que leio.

Messines.

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