Foi-se-me pouco a pouco amortecendo

Cosi trapassa, al trapassar d'un giorno,
        Della vita mortale il fiore e 'l verde,
        Nè, perchè faccia indietro april ritorno
        Si rinfiora ella mai, nè si rinverde.

                                          TASSO.

    Foi-se-me pouco a pouco amortecendo
    A luz que n'esta vida me guiava,
    Olhos fitos na qual até contava
    Ir os degraus do tumulo descendo.

    Em se ella anuveando, em a não vendo,
    Já se me a luz de tudo anuveava;
    Despontava ella apenas, despontava
    Logo em minha alma a luz que ia perdendo.

    Alma gemea da minha, e ingenua e pura
    Como os anjos do céo (se o não sonharam...)
    Quiz mostrar-me que, o bem, bem pouco dura.

    Não sei se me voou, se m'a levaram,
    Nem saiba eu nunca a minha desventura
    Contar aos que inda em vida não choraram.

    Ah! quando no seu collo reclinado,
    --Collo mais puro e candido que arminho,
    Como abelha na flôr do rosmaninho
    Osculava seu labio perfumado;

    Quando á luz dos seus olhos... (que era vêl-os,
    E enfeitiçar-se a alma em graça tanta!)
    Lia na sua bocca a Biblia Santa
    Escripta em letra côr dos seus cabellos;

    Quando a sua mãosinha pondo um dedo
    Em seus labios de rosa pouco aberta,
    Como timida pomba sempre álerta,
    Me impunha ora silencio ora segredo;

    Quando, como a alveloa, delicada
    E linda como a flôr que haja mais linda
    Passava como o cysne, ou como, ainda
    Antes do sol raiar, nuvem doirada;

    Quando em balsamo d'alma piedosa
    Ungia as mãos da supplice indigencia,
    Como a nuvem nas mãos da Providencia
    Uma lagrima estilla em flôr sequiosa;

    Quando a cruz do collar do seu pescoço
    Estendendo-me os braços, como estende
    O symbolo d'amor que as almas prende,
    Me dizia... o que ás mais dizer não oiço;

    Quando, se negra nuvem me espalhava
    Por sobre o coração algum desgosto,
    Conchegando-me ao seu candido rosto,
    No perfume d'um riso a dissipava;

    Quando o oiro da trança aos ventos dando
    E a neve de seu collo e seu vestido
    --Pomba que do seu par se ia perdido,
    Já de longe lhe ouvia o peito arfando;

    Tinha o céo da minha alma as sete côres,
    Valia-me este mundo um paraiso,
    Distillava-me a alma um dôce riso,
    Debaixo de meus pés nasciam flôres.

    Deus era inda meu pai. E em quanto pude
    Li o seu nome em tudo quanto existe
    --No campo em flôr, na praia arida e triste,
    No céo, no mar, na terra e... na virtude!

      Virtude! Que é mais que um nome
    Essa voz, que em ar se esvái,
    Se um riso que ao labio assome
    N'uma lagrima nos cái!

    Que és, virtude, se de luto
    Nos vestes o coração?
    És a blasphemia de Bruto
    --Não és mais que um nome vão.

    Abre a flôr á luz, que a enleva,
    Seu calix cheio d'amor,
    E o sol nasce, passa e leva
    Comsigo perfume e flôr!

      Que é d'esses cabellos d'oiro
    Do mais subido quilate,
    D'esses labios escarlate,
            Meu thesoiro!

    Que é d'esse halito, que ainda
    O coração me perfuma!
    Que é do teu collo de espuma,
            Pomba linda!

    Que é d'uma flôr da grinalda
    Dos teus doirados cabellos,
    D'esses olhos, quero vêl-os,
            Esmeralda!

    Que é d'essa alma que me déste!
    D'um sorriso, um só que fosse,
    Da tua bocca tão dôce,
            Flôr celeste!

    Tua cabeça que é d'ella
    A tua cabeça d'oiro,
    Minha pomba! meu thesoiro!
            Minha estrella!

      De dia a estrella d'alva empallidece;
    E a luz do dia eterno te ha ferido.
    Em teu languido olhar adormecido
    Nunca me um dia em vida amanhecesse.

    Foste a concha da praia. A flôr parece
    Mais ditosa que tu. Quem te ha partido,
    Meu calix de crystal, onde hei bebido
    Os nectares do céo... se um céo houvesse!

    Fonte pura das lagrimas que choro!
    Quem tão menina e moça desmanchado
    Te ha pelas nuvens os cabellos d'oiro!

    Some-te, vela de baixel quebrado!
    Some-te, vôa, apaga-te, meteoro!
    É n'este mundo mais um desgraçado.

      E as desgraças, podia prevel-as
    Quem a terra sustenta no ar,
    Quem sustenta no ar as estrellas,
    Quem levanta ás estrellas o mar.

    Deus podia prevêr a desgraça,
    Deus podia prevêr e não quiz;
    E não quiz, não... se a nuvem que passa
    Tambem póde chamar-se infeliz!

    A vida é o dia d'hoje,
    A vida é ai que mal sôa,
    A vida é sombra que foge,
    A vida é nuvem que vôa;
    A vida é sonho tão leve
    Que se desfaz como a neve

    E como o fumo se esvái:
    A vida dura um momento,
    Mais leve que o pensamento,
    A vida leva-a o vento,
    A vida é folha que cái!

    A vida é flôr na corrente,
    A vida é sôpro suave,
    A vida é estrella cadente,
    Vôa mais leve que a ave;
    Nuvem que o vento nos ares,
    Onda que o vento nos mares,
    Uma após outra lançou,
    A vida--penna cahida
    Da aza d'ave ferida--
    De valle em valle impellida,
    A vida o vento a levou!

    Como em sonhos o anjo que me afaga
    Leva na trança os lirios que lhe puz,
        E a luz quando se apaga
        Leva aos olhos a luz;

    Como os ávidos olhos d'um amante
    Levam comsigo a luz d'um dôce olhar,
        E o vento do levante
        Leva a onda do mar;

    Como o tenro filhinho quando expira
    Leva o beijo dos labios maternaes,
          E á alma que suspira
          O vento leva os ais;

    Ou como leva ao collo a mãi seu filho,
    E as azas leva a pomba que voou,
          E o sol leva o seu brilho,
          O vento m'a levou.

    E tu és piedoso,
    Senhor! és Deus e pai!
    E ao filho desditoso
    Não ouves um só ai!
    Estrellas déste aos ares,
    Dás perolas aos mares,
    Ao campo dás a flôr,
    Frescura dás ás fontes,
    O lirio dás aos montes
    E tiras-m'a, Senhor!

    Ah! quando n'uma vista o mundo abranjo,
    Estendo os braços e, palpando o mundo,
    O céo, a terra e o mar vejo a meus pés;
    Buscando em vão a imagem do meu anjo,
    Soletro á froixa luz d'um moribundo
          Em tudo só--talvez...

    Talvez é hoje a Biblia, o livro aberto
    Que eu só ponho ante mim nas rochas, quando
    Vou pelo mundo vêr se a posso vêr;
    E onde, como a palmeira do deserto,
    Apenas vejo aos pés, inquieta, ondeando
          A sombra do meu sêr.

    Meu sêr, voou na aza da aguia negra
    Que, levando-a, só não levou comsigo
          D'esta alma aquelle amor!
    E quando a luz do sol o mundo alegra,
    Chrysalida nocturna, a sós commigo,
          Abraço a minha dôr!

    Dôr inutil! Se a flôr, que ao céo envia
    Seus balsamos, se esfolha, e tu no espaço
    Achas depois seus atomos subtis;
    Inda has-de ouvir a voz que ouviste um dia,
    Como a sua Leonor inda ouve o Tasso!...
          Dante... a sua Beatriz!

    --Nunca; responde a folha que o outono,
    Da haste que a sustinha a mão abrindo,
          Ao vento confiou:
    --Nunca; responde a campa onde, do somno,
    E quem talvez sonhava um sonho lindo,
          Um dia despertou.

    --Nunca; responde o ai que o labio vibra;
    --Nunca; responde a rosa que na face
          Um dia emmurcheceu:
    E a onda, que um momento se equilibra
    Em quanto diz ás mais: deixai que eu passe!
          E passou e... morreu!

Coimbra.

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