FRAGMENTO
..........................................
Deixal-o: os olhos fecho á luz e quero...
Quero-te, oh sonho, se és doirado e lindo:
Mais que a teus fachos, pedagogo austero!
Que me condemnas em chorando e rindo.
Sempre olhos fundos, sempre esse ar severo...
Razão! não te amo; mas a ti, bemvindo,
Tu que os conselhos nunca, amor! lhe tomas;
Dás luz á lua, dás á rosa aromas.
Oh! ha tres vistas com que as coisas vemos;
Ha tres razões que as coisas determinam;
Uma a dos olhos; outra a que escondemos
N'isso ante que os alemos se inclinam;
Outra a que dentro no coração temos,
Que os limites do espaço só terminam:
Coube a primeira em sorte á borboleta;
A outra ao homem; a terceira ao poeta.
Mas será só poeta quem faz versos?
Não é a flôr poeta que o sol canta?
Não cabe aos ais tão intimos, dispersos
Do cantor triste nome e gloria tanta?
Esses aereos tão mimosos berços,
Que, excepto o homem, o furor quebranta
A quanto é fero e sanguinario, acaso
Cada um d'elles não é um parnaso?
Mais poesia em pobre margarida,
Que aos pés se pisa, enthesoirada vejo,
Que em muita madreperola polida
Que as cinzas guarda de finado harpejo.
Dize-me, pomba! que no ar sustida
Vens como a nuvem coroar d'um beijo
Quem teus desvelos maternaes comparte:
Camões excede-te em engenho e arte?
Vaidade humana! Do que é simples, claro,
Fazem mysterio; dão-lhe um nome e basta:
Como esse eunucho sacerdocio avaro
Que da verdade as multidões afasta...
Mas a verdade não é pedra d'ara
Nem arca-santa que só certa casta
Tem privilegio de levar ao hombro
Ou vêr de perto, sem morrer d'assombro.
Padre, ministro do Crucificado
É bom ferreiro afeiçoando o ferro
Com que ha-de prestes ir rompendo o arado
Os campos d'este secular desterro.
Melhor explicam um lugar sagrado
Bigorna e malho, que explica o berro
De bonzo inutil; que asperos abrolhos
Não viram nunca seus inchados olhos.
Apostolo é o pai que se afadiga
Só para que descance o filho amado;
Apostolo é a rocha em que se abriga
Ave agoureira e pobre desgraçado;
Apostolo é a lagrima que amiga
Cahe pela face em peito amargurado;
E esse monstro do céo que solitario
Correu o mundo á busca do Calvario.
E assim vós outros, falsos sacerdotes!
Que a mesma crença sustentar devêreis,
Poetas vos chamaes se em ôcos motes
Sabeis vasar combinações estereis?
Monges! tendes o habito; se os dotes,
Os doze dons do Espirito tivereis,
Crêreis que é mais poeta o dôce favo
Que a abelha fabríca em mato bravo.
Fechei a minha bocca largo espaço
Para vêr e pasmar; eu não podia
Tirar os olhos do tributo escaço
Que paga o albergue quando acaba o dia.
Pelo filhinho em maternal regaço
Como ave em ninho a balançar, medía,
Não essa Iliada a compasso austero,
Mas a de Christo, a do celeste Homero.
Lia esse livro que anda encadernado
Em pelle humana e embrulhado em pranto,
Mas para bençãos, para amor dictado
E quanto ha puro, quanto ha bello e santo:
Livro que o impio soletrou tocado,
Se o impio os olhos pôde erguer a tanto;
Mas que a moirama só conserva vivo
Porque não morre o immortal captivo.
Não morre: eterno como a fonte d'onde
Dimana a luz, a vida, amor e tudo,
Que amostra a terra, amostra o mar, e esconde
O céo, o espaço, o infinito mudo...
O mundo mudo! para quem? responde,
Valente martyr! que o pesado escudo,
Com que a verdade os olhos encobria,
Morreste mas quebraste á luz do dia.
«Existe um pai commum, que a todos ama
E d'elles só juiz a si reserva
Punil-os de seu mal; o sol derrama
Por cedro erguido e enterrada herva;
Desarma o laço que a perfidia trama,
Ou n'elle a prende e faz cahir; enerva
Braço que se ergue contra irmão; fecunda
Semente que não cahe de mão immunda.
«Diante d'elle as obras apparecem
Taes como as gera o intimo do peito:
Basta o amor do bem, se as mãos fallecem;
Sem esse amor é nada o grande feito.
Embora os homens de soltar se esquecem
Quem chora escravo; porque, em seu conceito
Deixe chorar quem purpuras arrasta,
Cante que é livre na verdade, e basta.»
Ella o resto fará; porque a seu braço
Reis não resistem, não resistem povos:
Um raio a nuvem parte e deixa o espaço
Coalhado d'astros que parecem novos:
Põe ao sol, que o fecunde, o simples traço,
Como a grande avestruz os grandes ovos;
E quem depois no mundo a luz lhe apaga?
Ninguem apaga a luz que o mundo alaga.
Sacerdocio embusteiro as mãos lhe prega
Em tronco immovel que seus labios gele;
Á justiça profana o justo entrega
(Sua irmã gemea que a verdade expelle:)
Já das almas senhor o rosto alegra,
Já morto o canta, sepultado e elle
Só o consome o incendio que já lavra
De bocca em bocca, o incendio da palavra.
Nenhum de nós o viu andar prégando,
Nenhum seu olhar vago lhe notámos,
Nunca o vimos no ermo a Deus orando,
Nunca a mão estendida lhe apertámos;
E por todos seu nome vai passando,
Todos, os seus preceitos, decorámos...
E que vá vêr-lhe a campa ao Oriente
Quem os olhos da carne tem sómente.
Que é um tumulo acaso, esse tributo
Pago pela materia á vil materia?
Quem vai na campa alliviar o luto
Se a vista alonga á amplidão aerea?
Quem a copia de Deus rebaixa a bruto,
E a mais que bruto a immortal, etherea,
Celeste pomba, que em seu vôo a vida
Em factos deixa ás almas esculpida?
Não me embala inda Homero nos seus braços
E me pinta nas mãos a natureza?
Não lhe ouço eu inda a voz...como ouço a espaços
A voz da grande Fama portugueza...
Quando me apraz olhar para os pedaços
D'este grande gigante que a fraqueza
Expoz aos coices...leão moribundo...
O rei antigamente d'este mundo?
Eu não sou dos que a patria sua adoram
Como adora o seu deus o fiel crente.
Vejo que todos n'uma patria moram
E sobre todos vejo um céo sómente:
Mas ame cada qual; que se outros choram
Nas mãos dos tigres que só comem gente,
Tambem meus olhos choram seu tormento
D'onde quer que seus ais me traga o vento.
Deixai ir em seu transito divino
Desde a Cruz do Calvario na Judêa,
Té á ponta da espada d'aço fino
Desembainhada em Italia, o tempo, a idêa.
Deixai andar a vêr o peregrino
Onde a ventura abunda, onde escassêa
Para vos dar, no oiro (Fé e Esperança!)
Rei e pastor nas conchas da balança.
Ha-de vir esse dia; e se a figueira
Em abrolhando perto vem o estio,
Não longe está: a cobra carniceira
De mil roscas e lugubre assobio
Que terra come, e come a terra inteira,
Se á terra inteira se enrolar, despiu
A pelle enorme com bastantes dôres
Esfolada por tres imperadores...
Eu não sei qual mais chore; se essa sêde
De sangue insaciavel dos tyrannos,
Ou se é a escuridão vossa que eu hei-de
Antes chorar, oh miseros humanos!
Que solimão vos deram, loucos! vêde:
Não vale a gloria que vos faz ufanos
Um só pingo de sangue, um só, vertido,
Um gemido de mãi, um só gemido!
É do sangue e das mães que eu fallo; e certo,
Que ha na vida mais santo? O sangue é vida;
E as mães fonte da vida: eu nunca esperto
Esta lampada d'alma, suspendida
Na abobada eterna e que tão perto
Parece ter a origem............
................senão quando
Vejo essa cara imagem suspirando.
Eu amo as mães, seu nome é terno e dôce;
Sim, amo as mães: nossa alma d'ellas nasce:
Quem n'um collo de mãi cahiu, achou-se
D'um pulo ao pé de Deus: a alma pasce
Lirios celestes vendo-as; e seccou-se,
........................................
Do casto e candido a sagrada fonte,
Se ella no tumulo encostou a fronte.
Essa é a virgem-mãi, voz suavissima
D'esse cantico eterno--o Evangelho;
A Virgem... Mãi... de Deus! virgem purissima,
Cheia de graça e de justiça espelho.
Oh poesia, poesia altissima
Como o fecho do empyreo! eu me ajoelho
E beijo a tua base, harpa celeste!
O coração, a corda que nos déste.
Em que labios se bebem mais delicias,
Em que face de virgem se desatam
Rosas mais puras d'intimas primicias,
Que nas que por dar vida a nós se matam?
Sempre a bem nosso, a nosso amor propicias
Na menina dos olhos nos retratam;
E nunca premio vil em paga pedem
De quanto, tanto d'alma, nos concedem.
Na montanha da Fé, mulher formosa
Se ante mim a meus pés desenrolasse,
Como o demonio, a vastidão pasmosa
Que elle dava a Jesus se o adorasse;
E me pedisse em premio uma só coisa
--Ás mãos de minha mãi furtar a face;
Eu lançava-lhe o cuspo, essa tesoira
Que em mil bocados faz a vacca-loira.
Vêde-a ao berço, sofrega de vida,
Que a sua é pouca para a dar ao filho;
Ella em cama de espinhos, mal vestida;
Elle enfaxado, em berço de tomilho;
Ella em contínua, azafamada lida,
Elle vendo se apanha á luz o brilho...
Já descobrindo em tão tenrinha idade
Que toda a sua sêde é de verdade.
E esses lobos que em duas patas andam
Para ter sempre em guarda as outras duas;
Que a monte sahem só, e só debandam
Como os ladrões, á noite, pelas ruas;
A empecer que os animos se expandam,
Que a luz se espalhe, e que as imagens tuas,
Bom Deus! de imagens passem: e que admira...
Sem o sopro que ao barro a vida inspira!
Já se iam vendo os campos relvejando
Cá da banda do sol n'este horisonte
Por onde já n'um mar se andou nadando
E onde apenas se encontra secca fonte;
E eil-os já os hypocritas minando,
Cortando ao povo hebreu na marcha a ponte
Só para que o manná que o céo lhe chove
No deserto dos reis jámais nem prove.
Retalhou-lhes o labio omnipotente
O habito comprido, a manga larga,
Olhar submisso mas lugar na frente;
E nem despido o monstro a presa larga.
«São sepulchros caiados, vêde, oh gente!
Por dentro podridão:» em voz amarga,
Em voz de grande horror, de grande abalo,
Christo clamou d'aquelles de quem fallo.
«Dizimam-te o coentro e a arruda,
Mas sua consciencia é generosa.
Chamam-se mestres... de sciencia muda,
A sciencia da cobra venenosa:
Olhai, não espia a fera, espreita, estuda
Toda a volta do dia, mais manhosa,
Que essa raça de viboras, que espalha
Veneno em todo o mundo, que coalha.»
Irmãs da Caridade! A Caridade
Tem só duas irmãs--a Fé e a Esperança:
Não traja as côres só d'uma irmandade,
Traja as côres do Arco-da-alliança:
Leva sósinha o pão da piedade,
Tira da roda essa infeliz criança...
Roda da vida, que anda de tal sorte
Que, em se lhe dando, é já contar com a morte.
Bemdita sejas tu, victima triste
De um peito amante e d'um amante ingrato!
Que nunca á mesma loba lançar viste
Inda mamando o cachorrinho ao mato;
Bemdita sejas tu, que o que pariste,
Teu fructo, imagem tua e teu retrato
Conservas como espelho onde te vejas;
Bemdita sejas tu, bemdita sejas.
Pára suspensa a pomba no seu vôo
Ao vêr-te contemplando-o ajoelhada;
E dizendo-te, a pomba: eu te abençôo
Da parte do pai nosso, irmã amada!
Abriste o seio ao dia e fecundou-o
Aquella luz que o mundo fez de nada,
E deu ao campo a flôr, á flôr semente
Com que a mãi os filhinhos seus sustente.
Bemdita sejas tu. Quando se esconde
Debaixo da tua aza o que criaste,
Abraça e beija os anjos Deus lá onde
A jarra está da flôr de que és a haste;
E um dia que não tenhas pão avonde
Ou do céo te não chova agua que baste,
Lança-lhe á luz do dia a mão direita,
Mostra-lh'o; Deus os filhos não engeita.
Pai não tinha o filhinho de Maria
E ella o bercinho lhe arma de mil flôres,
Deixando entrar em casa a luz do dia
Que em perfume as derreta em seus amores;
E inda abrindo os olhinhos mal lhe via,
Já os pinceis preparam os pintores;
Que o pai d'esse menino... Oh maravilha!
Os que não teem pai Deus os perfilha.
Deixa passar de largo a desposada...
De cujo filho o pai quem é, Deus sabe!
Deixa-a roçar-te os fatos enfadada
Se comtigo na praça a par não cabe:
Talvez um dia a casa levantada
Sobre a areia solta ao chão desabe
E em ruinas se encontre este letreiro:
«Não era o pai dos teus mais verdadeiro.»
Quem é que nasce aos pares como a rola,
Ou como a pomba morre em viuvando,
Que pela vêr sósinha em lodo atola
Fresca vide que está do chão lançando?
Acaso é só dourada altiva estola
Que liga os corpos em as mãos ligando,
Confunde os corações, e faz em summa
Que a Deus se elevem duas almas n'uma?
Amor é a palavra, o brado eterno
Solto por Deus ao vêr já feito o mundo,
Que fez tremer os carceres do inferno
E o sol ficou da côr d'um moribundo:
A primavera, estio, outono, inverno,
Terra, céo, alma pura, bicho immundo,
Tudo ahi cabe á larga de tal modo
Que n'essa concha Deus se fecha todo.
Amor enrola a nuvem na montanha
E espalma a onda em praia que não sente,
Ata ao raio de sol o fio d'aranha
E humilha ao conductor o raio ardente.
Quanto na rede immensa a vista apanha.
Tudo que jaz e cresce e vive e sente,
De Deus brotou n'um jorro de bondade
E póde amar-se em espirito e verdade.
Amo á aurora a luz doirada e clara,
E ao crepusculo as nuvens da tristeza,
A solida montanha, a nuvem rara
Por invisivel fio aos astros presa;
Amo a ancia feroz, a sêde avara
Com que a loba parida engole a presa,
E os crystallinos ais d'ave innocente
Que comprimenta o sol ingenuamente!
Amo o sopro que parte, esmaga, estala
Esses corvos que aos bandos vem das ondas
N'essas noites que o impio até se cala
Receando, trovão! que lhe respondas...
E amo o bafo subtil que a flôr embala
Pedindo-te, botão, que dentro o escondas,
E as primicias lhe dês que leve áquelle
Que te fez a ti flôr e vento a elle.
Tu só, que horror! a ti oh não te amo!
Cheiras-me a sangue tu; teus olhos baços
Olham, não vêem; tu tens bocca, chamo,
Não me respondes; tens como eu dois braços,
E não me abraças; brado afflicto, clamo,
Tens duas pernas, e não dás dois passos:
Ris, mas teu riso é d'enrilhados dentes;
Mettes-me medo; tu, cadaver! mentes.
Ninguem (prohibe-o Deus) o braço córte
Que lhe roubou o espirito divino;
Deus a Cain apaga sul e norte
E condemna a viver o assassino:
Mas tu, mentira! symbolo da morte...
Hypocrisia! teu sorrir felino
Te deixe arreganhada a bocca aberta,
Gele-te a morte a mão que a minha aperta.
..........................................
Evora.