INNOCENCIA

    Encolhe as azas, que te abrazas, louca!
    O fogo mata a quem o gera, attende;
    Foge e, se a vida te aborrece, estende
    Um braço aos anjos, que a distancia é pouca.

    Porque uma nuvem, onda transitoria
    Do mar immenso, vem pousar na serra,
    Não fica a nuvem pertencendo á terra:
    Tu és o anjo que desceu da gloria.

    Estranhas forças para ti me attrahem;
    E ás vezes cedo, tua cinta enleio;
    Teus olhos beijo; mas, contemplo o seio,
    Tua alma dorme, e os meus braços cahem...

    Desfallecidos, flôr celestial!
    Como ante um berço cahe a foice erguida,
    Se ha n'elle mais do que uma simples vida,
    Se ha innocencia que mil vidas val.

    Oh! não: teus labios o meu fel não provem:
    Outros os lirios d'essa face esmaguem;
    D'outros mãos impias teu sorriso apaguem,
    Em quanto os labios tuas graças louvem.

    Já no meu berço d'innocencia pude
    Pesar as joias, que hoje em vão te invejo:
    Provei os favos de illibado pejo,
    Sei o que perde quem o vicio illude.

    Alcantil ingreme, onde o raio é certo,
    Contém mais seiva, que inda o musgo cria:
    Quanto de fertil em nossa alma havia
    Só deixa o ermo da saudade aberto.

    Cahir no abysmo de intimos pezares
    D'essas alturas onde mal te vejo,
    O ponto estava derreter n'um beijo
    O fio de oiro que te manda aos ares.

    N'esses dois cofres, n'esse collo aonde
    Tantas riquezas enterrei ciumento
    (E que alta noite vela o pensamento
    Pelo crystal que o coração te esconde)

    Em oiro em barra, fina prata e quanto
    Coalha o vasto e opulento Oriente,
    Fôra em ruinas encontrar sómente
    Carvão, se um dia te quebrasse o encanto.

    Casta innocencia, de Deus filha e bella
    Entre as mais bellas! virginal aroma!
    Rosa ineffavel, que, se á luz assoma,
    Haste e raiz apodreceu com ella!

    Sol, que uma vez em nossa vida passas!
    Flôr, que uma e neutra, como Deus, não gera;
    Que se abre morre, mas sem prole, inteira
    Com todo o côro das virgineas graças:

    Ao vêr-te, embora meu olhar te envia
    O impio incenso de Nadab, ajoelho...
    Rosa da face e, não só rosa, espelho
    Da face occulta de quem espalha o dia!

    Se por teus membros orvalhadas flôres
    Prodigas mãos da formosura entornam,
    Flôres mais bellas o teu seio adornam...
    Vós, lirios d'alma, virginaes amores!

    O céo me encanta, como encanta o inferno.
    Mysterio... espaço... mente exploradora!
    Morre nas mãos o que a nossa alma adora
    --Vago, impalpavel, infinito, eterno!

Evora.

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