N'UM BAIRRO MODERNO
Autor: Cesário Verde on Tuesday, 8 January 2013
A Manuel Ribeiro Dez horas da manhã; os transparentes Matizam uma casa apalaçada; Pelos jardins estancam-se os nascentes, E fere a vista, com brancuras quentes, A larga rua macadamisada. Rez-de-chaussée repousam socegados, Abriram-se, n'alguns, as persianas, E d'um ou d'outro, em quartos estucados, Ou entre a rama dos papeis pintados, Reluzem, n'um almoço, as porcelanas. Como é saudavel ter o seu conchego, E a sua vida facil! Eu descia, Sem muita pressa, para o meu emprego, Aonde agora quasi sempre chego Com as tonturas d'uma apoplexia. E rota, pequenina, aramafada, Notei de costas uma rapariga, Que no xadrez marmoreo d'uma escada, Como um retalho de horta agglomerada, Pousára, ajoelhando, a sua giga. E eu, apesar do sol, examinei-a: Poz-se de pé: resoam-lhe os tamancos; E abre-se-lhe o algodão azul da meia, Se ella se curva, esguedelhada, feia, E pendurando os seus bracinhos brancos. Do patamar responde-lhe um criado: «Se te convém, despacha; não converses. Eu não dou mais.» E muito descançado, Atira um cobre livido, oxidado, Que vem bater nas faces d' uns alperces. Subitamente,--que visão de artista!-- Se eu transformasse os simples vegetaes, Á luz do sol, o intenso colorista, N'um ser humano que se mova e exista Cheio de bellas proporções carnaes?! Boiam aromas, fumos de cozinha; Com o cabaz ás costas, e vergando, Sobem padeiros, claros de farinha; E ás portas, uma ou outra campainha Toca, frenetica, de vez em quando. E eu recompunha, por anatomia, Um novo corpo organico, aos bocados. Achava os tons e as fórmas. Descobria Uma cabeça n'uma melancia, E n'uns repolhos seios injectados. As azeitonas, que nos dão o azeite, Negras e unidas, entre verdes folhos, São tranças d'um cabello que se ageite; E os nabos--ossos nus, da côr do leite, E os cachos d'uvas--os rosarios d'olhos. Ha collos, hombros, boccas, um semblante Nas posições de certos fructos. E entre As hortaliças, tumido, fragrante, Como d'alguem que tudo aquilo jante, Surge um melão, que me lembrou um ventre. E, como um feto, emfim, que se dilate, Vi nos legumes carnes tentadoras, Sangue na ginja vivida, escarlate, Bons corações pulsando no tomate E dedos hirtos, rubros, nas cenouras. O sol dourava o céo. E a regateira, Como vendera a sua fresca alface E déra o ramo de hortelã que cheira, Voltando-se, gritou-me prazenteira: «Não passa mais ninguem!... Se me ajudasse?!...» Eu acerquei-me d'ella, sem desprezo; E, pelas duas azas a quebrar, Nós levantámos todo aquelle peso Que ao chão de pedra resistia preso, Com um enorme esforço muscular. «Muito obrigada! Deus lhe dê saúde!» E recebi, náquella despedida, As forças, a alegria, a plenitude, Que brotam d'um excesso de virtude Ou d'uma digestão desconhecida. E em quanto sigo para o lado opposto, E ao longe rodam umas carruagens, A pobre afasta-se, ao calor de agosto, Descolorida nas maçãs do rosto, E sem quadris na saia de ramagens. Um pequerrucho rega a trepadeira D'uma janella azul; e, com o ralo Do regador, parece que joeira Ou que borrifa estrellas; e a poeira Que eleva nuvens alvas e incensal-o. Chegam do gigo emanações sadias, Oiço um canario--que infantil chilrada!-- Lidam ménages entre as gelosias, E o sol estende, pelas frontarias, Seus raios de laranja distillada. E pittoresca e audaz, na sua chita, O peito erguido, os pulsos nas ilhargas, D'uma desgraça alegre que me incita, Ella apregôa, magra, enfezadita, As suas couves repolhudas, largas. E como as grossas pernas d'um gigante, Sem tronco, mas athleticas, inteiras, Carregam sobre a pobre caminhante, Sobre a verdura rustica, abundante, Duas frugaes aboboras carneiras.
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