NÓS

 

A A. de S. V.


I

Foi quando em dois verões, seguidamente, a Febre
E o Cholera tambem andaram na cidade,
Que esta população, com um terror de lebre,
Fugiu da capital como da tempestade.

Ora, meu pae, depois das nossas vidas salvas,
(Até então nós só tiveramos sarampo),
Tanto nos viu crescer entre uns montões de malvas
Que elle ganhou por isso um grande amor ao campo.

Se acaso o conta, ainda a fronte se lhe enruga:
O que se ouvia sempre era o dobrar dos sinos;
Mesmo no nosso predio, os outros inquilinos
Morreram todos. Nós salvámo-nos na fuga.

Na parte mercantil, foco da epidemia,
Um panico! Nem um navio entrava a barra,
A alfandega parou, nenhuma loja abria,
E os turbolentos caes cessaram a algazarra.

Pela manhã, em vez dos trens dos baptisados,
Rodavam sem cessar as seges dos enterros.
Que triste a sucessão dos armazens fechados!
Como um domingo inglez na «city», que desterro!

Sem canalisação, em muitos burgos ermos,
Seccavam dejecções cobertas de mosqueiros.
E os medicos, ao pé dos padres e coveiros,
Os ultimos fieis, tremiam dos enfermos!

Uma illuminação a azeite de purgueira,
De noite amarellava os predios macillentos.
Barricas d'alcatrão ardiam; de maneira
Que tinham tons d'inferno outros arruamentos.

Porém, lá fora, á solta, exageradamente
Emquanto acontecia essa calamidade,
Toda a vegetação, plethorica, potente,
Ganhava immenso com a enorme mortandade!

N'um impeto de seiva os arvoredos fartos,
N'uma opulenta furia as novidades todas,
Como uma universal celebração de bodas,
Amaram-se! E depois houve soberbos partos.

Por isso, o chefe antigo e bom da nossa casa,
Triste d'ouvir fallar em orphãos e em viuvas,
E em permanencia olhando o horizonte em brasa,
Não quiz voltar senão depois das grandes chuvas.

Elle d'um lado, via os filhos achacados,
Um livido flagello e uma molestia horrenda!
E via, do outro lado, eiras, lezirias, prados,
E um salutar refugio e um lucro na vivenda!

E o campo, desde então, segundo o que me lembro,
É todo o meu amor de todos estes annos!
Nós vamos para lá; somos provincianos,
Desde o calor de maio aos frios de novembro!

II

Que de fructa! E que fresca e temporã,
Nas duas boas quintas bem muradas,
Em que o sol, nos talhões e nas latadas,
Bate de chapa, logo de manhã!

O laranjal de folhas negrejantes,
(Porque os terrenos são resvaladiços)
Desce em socalcos todos os macissos,
Como uma escadaria de gigantes.

Das courellas, que criam cereaes,
De que os donos--ainda!--pagam foros.
Dividem-n'o fechados pitosporos,
Abrigos de raizes verticaes.

Ao meio, a casaria branca assenta
Á beira da calçada, que divide
Os escuros pomares de pevide,
Da vinha, n'uma encosta soalhenta!

Entretanto, nao ha maior prazer
Do que, na placidez das duas horas,
Ouvir e ver, entre o chiar das noras,
No largo tanque as bicas a correr!

Muito ao fundo, entre olmeiros seculares,
Secca o rio! Em trez mezes d'estiagem,
O seu leito é um atalho de passagem,
Pedregosissimo, entre dois logares.

Como lhe luzem seixos e burgaus
Roliçõs! Marinham nas ladeiras
Os renques africanos das piteiras,
Que como áloes espigam altos paus!

Montanhas inda mais longiquamente,
Com restevas, e combros como boças,
Lembram cabeças estupendas, grossas,
De cabello grisalho, muito rente.

E, a contrastar, nos valles, em geral,
Como em vidraça d'uma enorme estufa,
Tudo se attrae, se impõe, alarga e entufa,
D'uma vitalidade equatorial!

Que de frugalidades nós criamos!
Que torrão espontaneo que nós somos!
Pela outomnal maturação dos pomos,
Com a carga, no chão pousam os ramos.

E assim postas, nos barros e areiaes,
As maceiras vergadas fortemente,
Parecem, d'uma fauna surprehendente,
Os polypos enormes, diluviaes.

Comtudo, nós não temos na fazenda
Nem uma planta só de mero ornato!
Cada pé mostra-se util, é sensato,
Por mais finos aromas que rescenda!

Finalmente, na fertil depressão,
Nada se vê que a nossa mão não regre:
A florescencias d'um matiz alegre
Mostra um sinal--a fructificação!

       *       *       *       *       *

Ora, ha dez annos, n'este chão de lava
E argila e areia e alluviões dispersas,
Entre especies botanicas diversas,
Forte, a nossa familia radiava!

Unicamente, a minha doce irmã,
Como uma tenue e immaculada rosa,
Dava a nota galante e melindrosa
Na trabalheira rustica, aldeã.

E foi n'um anno prodigo, excellente,
Cuja amargura nada sei que adoce,
Que nós perdemos essa flor precoce,
Que cresceu e morreu rapidamente!

Ai d'aquelles que nascem n'este cahos,
E, sendo fracos, sejam generosos!
As doenças assaltam os bondosos
E--custa a crer--deixam viver os maus!

       *       *       *       *       *

Fecho os olhos cançados, e descrevo
Das telas da memoria retocadas,
Biscates, hortas, batataes, latadas,
No paiz montanhoso, com relevo!

Ah! Que aspectos benignos e ruraes
N'esta localidade tudo tinha,
Ao ires, com o banco de palhinha,
Para a sombra que faz nos parreiraes!

Ah! Quando a calma, á sesta, nem consente
Que uma folha se mova ou se desmanche,
Tu, refeita e feliz com o teu «lunch»,
Nos ajudavas, voluntariamente!...

Era admiravel--n'este grau do Sul!--
Entre a rama avistar o teu rosto alvo,
Ver-te escolhendo a uva diagalvo,
Que eu embarcava para Liverpool.

A exportação de frutas era um jogo:
Dependiam da sorte do mercado
O boal, que é de perolas formado,
E o ferral, que é ardente e côr de fogo!

Em agosto, ao calor canicular,
Os passaros e enxames tudo infestam;
Tu cortavas os bagos que não prestam
Com a tua thesoura de bordar.

Douradas, pequeninas, as abelhas,
E negros, volumosos, os besoiros,
Circumdavam, com impetos de toiros,
As tuas candidissimas orelhas.

Se uma vespa lançava o seu ferrão
Na tua cutis--petala de leite!--
Nós collocavamos dez réis e azeite
Sobre a galante, a rosea inflammação!

E se um de nós, já farto, arrenegado,
Com o chapeo caçava a bicharia,
Cada zangão voando, á luz do dia,
Lembrava o teu dedal arremessado.

       *       *       *       *       *

Que d'encantos! Na força do calor
Desabrochavas no padrão da bata,
E, surgindo da gola e da gravata,
Teu pescoço era o caule d'uma flor!

Mas que cegueira a minha! Do teu porte
A fina curva, a indefinida linha,
Com bondades d'herbivora mansinha,
Eram prenuncios de fraqueza e morte!

Á procura da libra e do «schilling»,
Eu andava abstracto e sem que visse
Que o teu alvor romantico de «miss»
Te obrigava a morrer antes de mim!

E antes tu, ser lindissimo, nas faces
Tivesses «panno» como as camponezas;
E sem brancuras, sem delicadezas,
Vigorosa e plebeia, inda durasses!

Uns modos de carnivora feroz
Podias ter em vez de inoffensivos;
Tinhas caninos, tinhas incisivos,
E podias ser rude como nós!

Pois n'este sítio, que era de sequeiro,
Todo o genero ardente resistia,
E, á larguissima luz do Meio-dia,
Tomava um tom opalico e trigueiro!

       *       *       *       *       *

Sim! Europa do Norte, o que suppões
Dos vergeis que abastecem teus banquetes,
Quando ás dockas, com fructas, os paquetes
Chegam antes das tuas estações?!

Oh! As ricas «primeurs» da nossa terra
E as tuas frutas acidas, tardias,
No azedo amoniacal das queijarias
Dos fleugmaticos «farmers» d'Inglaterra!

Ó cidades fabris, industriaes,
De nevoeiros, poeiradas de hulha,
Que pensaes do paiz que vos atulha
Com a fructa que sae dos seus quintaes?

Todos os annos, que frescor se exhala!
Abundancias felizes que eu recordo!
Carradas brutas que iam para bórdo!
Vapores por aqui fazendo escala!

Uma alta parreira muscatel
Por doce não servia para embarque:
Palacios que rodeiam Hyde-Park,
Não conheceis esse divino mel!

Pois a Corôa, o Banco, o Almirantado,
Não as têm nas florestas em que ha corças,
Nem em vós que dobraes as vossas forças,
Pradarias d'um verde illimitado!

Anglos-Saxonios, tendes que invejar!
Ricos suicidas, comparae comvosco!
Aqui tudo espontaneo, alegre, tosco,
Facilimo, evidente, salutar!

Opponde ás regiões que dão os vinhos
Vossos montes d'escorias inda quentes!
E as febris officinas estridentes
Ás nossas tecelagens e moinhos!

E ó condados mineiros! Extensões
Carboniferas! Fundas galerias!
Fabricas a vapor! Cutelarias!
E mechanicas, tristes fiações!

Bem sei que preparaes correctamente
O aço e a seda, as laminas e o estofo;
Tudo o que há de mais dúctil, de mais fofo,
Tudo o que ha de mais rijo e resistente!

Mas isso tudo é falso, é machinal,
Sem vida, como um circulo ou um quadrado,
Com essa perfeição do fabricado,
Sem o rythmo do vivo e do real!

E cá o santo sol, sobre isso tudo,
Faz conceber as verdes ribanceiras;
Lança as rosaceas bellas e fructeiras
Nas searas de trigo palhagudo!

Uma aldeia d'aqui é mais feliz,
Londres sombria, em que scintilla a corte!...
Mesmo que tu, que vives a compor-te,
Grande seio arquejante de Paris!...

Ah! Que de gloria, que de colorido,
quando, por meu mandado e meu conselho,
Cá se empapelam «as maçãs d'espelho»
Que Herbert Spencer talvez tenha comido!

Para alguns são prosaicos, são banaes
Estes versos de fibra succolenta;
Como se a polpa que nos dessedenta
Nem ao menos valesse uns madrigaes!

Pois o que a bocca trava com surprezas
Senão as frutas tónicas e puras!
Ah! N'um jantar de carnes e gorduras
A graça vegetal das sobremesas!...

Jack, marujo inglez, tu tens razão
Quando, ancorando em portos como os nossos,
As laranjas com cascas e caróços
Comes com bestial soffreguidão!...

       *       *       *       *       *

A impressão d'outros tempos, sempre viva,
Dá estremeções no meu passado morto,
E inda viajo, muita vez, absorto,
Pelas varzeas da minha retentiva.

Então recordo a paz familiar,
Todo um painel pacifico d'enganos!
E a distancia fatal d'uns poucos annos
É uma lente convexa, d'augmentar.

Todos os typos mortos resuscito!
Perpetuam-se assim alguns minutos!
E eu exagéro os casos diminutos
Dentro d'um véo de lagrimas bemdito.

Pinto quadros por lettras, por signaes,
Tão luminosos como os do Levante,
Nas horas em que a calma é mais queimante,
Na quadra em que o verão aperta mais.

Como destacam, vivas, certas cores,
Na vida externa cheia d'alegrias!
Horas, vozes, locaes, physionomias,
As ferramentas, os trabalhadores!

Aspiro um cheiro a cosedura, e a lar
E a rama do pinheiro! Eu adivinho
O resinoso, o tão agreste pinho
Serrado nos pinhaes da beira mar.

Vinha cortada, aos feixes, a madeira,
Cheia de nós, d'imperfeições, de rachas;
Depois armavam-se, n'um prompto as caixas
Sob uma calma espessa e calaceira!

Feias e fortes! Punham-lhes papel,
A forral-as. E em grossa serradura
Acamava-se a uva prematura
Que não deve servir para tonel!

Cingiam-n'as com arcos de castanho
Nas ribeiras cortados, nos riachos;
E eram d'assucar e calor os cachos,
Criados pelo esterco e pelo amanho!

Ó pobre estrume, como tu compões
Estes pampanos doces como afagos!
«Dedos de dama»: transparentes bagos!
«Tetas de cabra»: lacteas carnações!

E não eram caixitas bem dispostas
Como as passas de Malaga e Alicante;
Com sua fórma estavel, ignorante,
Estas pesavam, brutalmente, ás costas!

Nos vinhatorios via fulgurar,
Com tanta cal que torna as vistas cegas,
Os parallelogramos das adegas,
Que têm lá dentro as dornas e o lagar!

Que rudeza! Ao ar livre dos estios.
Que grande azafama! Apressadamente
Como soava um martellar frequente,
Véspera da saida dos navios!

Ah! Ninguem entender que ao meu olhar
Tudo tem certo espirito secreto!
Com folhas de saudades um objecto
Deita raizes duras de arrancar!

As navalhas de volta, por exemplo,
Cujo bico de passaro se arqueia,
Forjadas no casebre d'uma aldeia,
São antigas amigas que eu contemplo!

Ellas, em seu labor, em seu lidar,
Com sua ponta como a da podoas,
Serviam próbas, uteis, dignas, boas,
Nunca tintas de sangue e de matar.

E as enxós de martello, que d'um lado
Cortavam mais do que as enxadas cavam,
Por outro lado, rápidas, pregavam,
D'uma pancada, o prego fasquiado!

O meu animo verga na abstracção,
Com a espinha dorsal dobrada ao meio;
Mas se de materiaes descubro um veio
Ganho a musculatura d'um Sansão!

E assim--e mais no povo a vida é corna--
Amo os officios como o de ferreiro,
Com seu folle arquejante, seu brazeiro,
Seu malho retumbante na bigorna!

E sinto, se me ponho a recordar
Tanto utensilio, tantas perspectivas,
As tradições antigas, primitivas,
E a formidavel alma popular!

Oh! Que brava alegria eu tenho quando
Sou tal qual como os mais! E, sem talento,
Faço um trabalho technico, violento,
Cantando, praguejando, batalhando!

       *       *       *       *       *

Os fruteiros, tostados pelos soes,
Tinham passado, muita vez, a raia,
E, espertos, entre os mais da sua laia,
--Pobres camponios--eram uns heroes.

E por isso, com phrases imprevistas,
E colorido e estylo e valentia,
As «haciendas» que ha na «Andalucia»
Pintavam como novos paysagistas.

De como, ás calmas, n'essas excursões,
Tinham aguas salobras por refrescos;
E amarellos, enormes, gigantescos,
Lá batiam o queixo com sesões!

Tinham corrido já na adusta Hespanha,
Todo um fertil plató sem arvoredos,
Onde armavam barracas nos vinhedos,
Como tendas alegres de campanha.

Que pragas castelhanas, que alegrão,
Quanto contavam scenas de pousadas!
Adoravam as cintas encarnadas
E as côres, como os pretos do sertáo!

E tinham, sem que a lei a tal obrigue,
A educação vistosa das viagens!
Uns por terra partiam e estalagens,
Outros, aos montes, no convez d'um brigue!

Só um havia, triste e sem fallar
Que arrastava a maior misantropia,
E, roxo como um figado, bebia
O vinho tinto que eu mandava dar!

Pobre da minha geração exangue
De ricos! Antes, como os abrutados,
Andar com uns sapatos encebados,
E ter riqueza chimica no sangue!

       *       *       *       *       *

Mas hoje a rustica lavoura, quer
Seja o patrão, quer seja o jornaleiro,
Que inferno! Em vão o lavrador rasteiro
E a filharada lidam, e a mulher!...

Desde o princípio ao fim é uma maçada
De mil demonios! Torna-se preciso
Ter-se muito vigor, muito juizo
Para trazer a vida equilibrada!

Hoje eu sei quanto custam a criar
As cepas, desde que eu as pódo e empo.
Ah! O campo não é um passatempo
Com bucolismos, rouxinoes, luar.

A nós tudo nos rouba e nos dizima:
O rapazio, o imposto, as pardaladas,
As osgas peçonhentas, achatadas,
E as abelhas que engordam na vindima.

E o pulgão, a lagarta, os caracoes,
E ha inda, alem do mais com que se ateima,
As intemperies, o granizo, a queima,
E a concorrencia com os hespanhoes.

Na vendas, os vinhateiros d'Almeria
Competem contra os nossos fazendeiros.
Dão frutas aos leilões dos estrangeiros,
Por uma cotação que nos desvia!

Pois tantos contras, rudes como são,
Forte e teimoso, o camponez destroe-os!
Venham de lá pesados os comboyos
E os «buques» estivados no porão!

Não, não é justo que eu a culpa lance
Sobre estes nadas! Puras bagatellas!
Nós não vivemos só de coisas bellas,
Nem tudo corre como n'um romance!

Para a Terra parir hade ter dor,
E é para obter as asperas verdades,
Que os agronomos cursam nas cidades,
E, á sua custa, aprende o lavrador.

Ah! Não eram insectos nem as aves
Que nos dariam dias tão difficeis,
Se vós, sabios, na gente descobrisseis
Como se curam as doenças graves.

Não valem nada a cava, a enxofra, e o mais!
Difficultoso trato das cearas!
Lutas constantes sobre as jornas caras!
Compras de bois nas feiras annuaes!

O que a alegria em nós destroe e mata,
Não é rede arrastante d'escalracho,
Nem é «suão» queimante como um facho,
Nem invasões bulhosas d'herva pata.

Podia ter seccado o poço em que eu
Me debruçava e te pregava sustos,
E mais as hervas, arvores e arbustos
Que--tanta vez!--a tua mão colheu.

«Molestia negra» nem «charbon» não era,
Como um archote incendiando as parras!
Tão pouco as bastas e invisiveis garras,
Da enorme legião do phylloxera!

Podiam mesmo, com o que contêm,
Os muros ter caido às invernias!
Somos fortes! As nossas energias
Tudo vencem e domam muito bem!

Que os rios, sim, que como touros mugem,
Transbordando atulhassem as regueiras!
Chorassem de resina as larangeiras!
Ennegrecessem outras com ferrugem!

As turvas cheias de novembro, em vez
Do nateiro subtil que fertilisa,
Fossem a inundação que tudo pisa,
No rebanho afogassem muita rez!

Ah! N'esse caso pouco se perdera,
Pois isso tudo era um pequeno damno,
Á vista do cruel destino humano
Que os dedos te fazia como cera!

Era essa tysica em terceiro grau,
Que nos enchia a todos de cuidado,
Te curvava e te dava um ar alado
Como quem vae voar d'um mundo mau.

Era a desolação que inda nos mina
(Porque o fastio é bem peior que a fome)
Que a meu pai deu a curva que a consome,
E a minha mãe cabellos de platina.

Era a chlorose, esse tremendo mal,
Que desertou e que tornou funesta
A nossa branca habitação em festa
Reverberando a luz meridional.

Não desejemos,--nós os sem defeitos,--
Que os tysicos pereçam! Má theoria,
Se pelos meus o apuro principia,
Se a Morte nos procura em nossos leitos!

A mim mesmo, que tenho a pretensão
De ter saude, a mim que adoro a pompa
Das forças, pode ser que se me rompa
Uma arteria, e me mine uma lesão.

Nós outros, teus irmãos, teus companheiros,
Vamos abrindo um matagal de dores!
E somos rijos como os serradores!
E positivos como os engenheiros!

Porém, hostis, sobresaltados, sós,
Os homens architectam mil projectos
De victoria! E eu duvido que os meus netos
Morram de velhos como os meus avós!

Porque, parece, ou fortes ou velhacos
Serão apenas os sobreviventes;
E ha pessoas sinceras e clementes,
E troncos grossos com seus ramos fracos!

E que fazer se a geração decae!
Se a seiva genealogica se gasta!
Tudo empobrece! Extingue-se uma casta!
Morre o filho primeiro do que o pai!

Mas seja como for, tudo se sente
Da tua ausencia! Ah! como o ar nos falta,
Ó flor cortada, susceptivel, alta,
Que assim seccaste prematuramente!

Eu que de vezes tenho o desprazer
De reflectir no tumulo! E medito
No eterno Incognoscivel infinito,
Que as idéas não podem abranger!

Como em paul em que nem cresça a junca
Sei d'almas estagnadas! Nós absortos,
Temos ainda o culto pelos Mortos,
Esses ausentes que não voltam nunca!

Nós ignoramos, sem religião,
Ao rasgarmos caminho, a fé perdida,
Se te vemos ao fim d'esta avenida
Ou essa horrivel aniquilação!...

E ó minha martyr, minha virgem, minha
Infeliz e celeste creatura,
Tu lembras-nos de longe a paz futura,
No teu jazigo, como uma santinha!

E emquanto a mim, és tu que substitues
Todo o mysterio, toda a santidade,
Quando em busca do reino da verdade
Eu ergo o meu olhar aos ceos azues!


III

Tinhamos nós voltado á capital maldicta,
Eu vinha de polir isto tranquillamente,
Quando nos seccedeu uma cruel desdita,
Pois um de nós caiu, de subito, doente.

Uma tuberculose abria-lhe cavernas!
Dá-me rebate ainda o seu tossir profundo!
E eu sempre lembrarei, triste, as palavras ternas,
Com que se despediu de todos e do mundo!

Pobre rapaz robusto e cheio de futuro!
Não sei d'um infortunio immenso como o seu!
Vio o seu fim chegar como um medonho muro,
E, sem querer, afflicto e attonito, morreu!

De tal maneira que hoje, eu desgostoso e azedo
Como tanta crueldade e tantas injustiças,
Se inda trabalho é como os presos no degredo,
Com planos de vingança e idéas insubmissas.

E agora, de tal modo a minha vida é dura,
Tenho momentos maus, tão tristes, tão perversos,
Que sinto só desdem pela litteratura,
E até desprézo e esqueço os meus amados versos!
Género: 

Comentários

Muito bom! Versos ricos e iluminados.