O SENTIMENTO D'UM OCCIDENTAL
Autor: Cesário Verde on Monday, 14 January 2013
A Guerra Junqueiro I AVE MARIAS Nas nossas ruas, ao anoitecer, Ha tal soturnidade, ha tal melancholia, Que as sombras, o bulicio, o Tejo, a maresia Despertam-me um desejo absurdo de soffrer. O ceu parece baixo e de neblina, O gaz extravasado enjôa-me, perturba; E os edificios, com as chaminés, e a turba Toldam-se d'uma côr monotona e londrina. Batem os carros de aluguer, ao fundo, Levando á via ferrea os que se vão. Felizes! Occorrem-me em revista exposições, paizes: Madrid, Paris, Berlim, S. Petersburgo, o mundo! Semelham-se a gaiolas, com viveiros, As edificações sómente emmadeiradas: Como morcegos, ao cair das badaladas, Saltam de viga em viga os mestres carpinteiros. Voltam os calafates, aos magotes, De jaquetão ao hombro, enfarruscados, seccos; Embrenho-me, a scismar, por boqueirões, por beccos, Ou érro pelos caes a que se atracam botes. E evoco, então, as chronicas navaes: Mouros, baixeis, heroes, tudo resuscitado! Lucta Camões no Sul, salvando um livro a nado! Singram soberbas naus que eu não verei jámais! E o fim da tarde inspira-me; e incommoda! De um couraçado inglez vogam os escaleres; E em terra n'um tinir de louças e talheres Flammejam, ao jantar, alguns hoteis da moda. N'um trem de praça arengam dois dentistas; Um tropego arlequim braceja n'umas andas; Os cherubins do lar fluctuam nas varandas; Ás portas, em cabello, enfadam-se os logistas! Vasam-se os arsenaes e as officinas; Reluz, viscoso, o rio, apressam-se as obreiras; E n'um cardume negro, herculeas, galhofeiras, Correndo com firmeza, assomam as varinas. Vem sacudindo as ancas opulentas! Seus troncos varonis recordam-me pilastras; E algumas, á cabeça, embalam nas canastras Os filhos que depois naufragam nas tormentas, Descalças! Nas descargas de carvão, Desde manhã á noite, a bórdo das fragatas; E apinham-se n'um bairro aonde miam gatas, E o peixe pôdre géra os focos de infecção! II NOITE FECHADA Toca-se as grades, nas cadeias. Som Que mortifica e deixa umas loucuras mansas! O aljube, em que hoje estão velhinhas e creanças, Bem raramente encerra uma mulher de «dom»! E eu desconfio, até, de um aneurisma Tão morbido me sinto, ao accender das luzes; Á vista das prisões, da velha sé, das cruzes, Chora-me o coração que se enche e que se abysma. A espaços, illuminam-se os andares, E as tascas, os cafés, as tendas, os estancos Alastram em lençol os seus reflexos brancos; E a lua lembra o circo e os jogos malabares. Duas egrejas, n'um saudoso largo, Lançam a nodoa negra e funebre do clero: N'ellas esfumo um ermo inquisidor severo, Assim que pela Historia eu me aventuro e alargo. Na parte que abateu no terremoto, Muram-se as construcções rectas, eguaes, crescidas; Affrontam-me, no resto, as ingremes subidas, E os sinos d'um tanger monastico e devoto. Mas, n'um recinto publico e vulgar, Com bancos de namoro e exiguas pimenteiras, Bronzeo, monumental, de proporções guerreiras, Um épico d'outr'ora ascende, n'um pilar! E eu sonho o Colera, imagina a Febre, N'esta accumulação de corpos enfezados; Sombrios e espectraes recolhem os soldados; Inflamma-se um palacio em face de um casebre. Partem patrulhas de cavallaria Dos arcos dos quarteis que foram já conventos; Edade-média! A pé, outras, a passos lentos, Derramam-se por toda a capital, que esfria. Triste cidade! Eu temo que me avives Uma paixão defunta! Aos lampeões distantes, Enlutam-me, alvejando, as tuas elegantes, Curvadas a sorrir ás montras dos ourives. E mais: as costureiras, as floristas Descem dos magasins, causam-me sobresaltos; Custa-lhes a elevar os seus pescoços altos E muitas d'ellas são comparsas ou coristas. E eu, de luneta de uma lente só, Eu acho sempre assumpto a quadros revoltados: Entro na brasserie; ás mesas de emigrados, Ao riso e á crua luz joga-se o dominó. III AO GAZ E saio. A noite peza, esmaga. Nos Passeios de lagedo arrastam-se as impuras. Ó molles hospitaes! Sae das embocaduras Um sopro que arripia os hombros quasi nús. Cercam-me as lojas, tépidas. Eu penso Ver cirios lateraes, ver filas de capellas, Com santos e fieis, andores, ramos, velas, Em uma cathedral de um comprimento immenso. As burguezinhas do Catholocismo Resvalam pelo chão minado pelos canos; E lembram-me, ao chorar doente dos pianos, As freiras que os jejuns matavam de hysterismo. N'um cutileiro, de avental, ao torno, Um forjador maneja um malho, rubramente; E de uma padaria exhala-se, inda quente, Um cheiro salutar e honesto a pão no forno. E eu que medito um livro que exarcebe, Quizera que o real e a analyse m'o dessem; Casas de confecções e modas resplandecem; Pelas vitrines ólha um ratoneiro imberbe. Longas descidas! Não poder pintar Com versos magistraes, salubres e sinceros, A esguia diffusão dos vossos reverberos, E a vossa pallidez romantica e lunar! Que grande cobra, a lubrica pessoa, Que espartilhada escolhe uns chales com debuxo! Sua excellencia attráe, magnetica, entre luxo, Que ao longo dos balcões de mogno se amontoa. E aquella velha, de bandós! Por vezes, A sua traîne imita um leque antigo, aberto, Nas barras verticaes, a duas tintas. Perto, Escarvam, á victoria, os seus mecklemburguezes. Desdobram-se tecidos estrangeiros; Plantas ornamentaes seccam nos mostradores; Flócos de pós de arroz pairam suffocadores, E em nuvems de setins requebram-se os caixeiros, Mas tudo cança! Apagam-se nas frentes Os candelabros, como estrellas, pouco a pouco; Da solidão regouga um cauteleiro rouco; Tornam-se mausoléos as armações fulgentes. «Dó da miseria!... Compaixão de mim!...» E, nas esquinas, calvo, eterno, sem repouso, Pede-me sempre esmola um homemzinho idoso, Meu velho professor nas aulas de latim! IV HORAS MORTAS O tecto fundo de oxygenio, d'ar, Estende-se ao comprido, ao meio das trapeiras; Vem lagrimas de luz dos astros com olheiras, Enleva-me a chimera azul de transmigrar. Por baixo, que portões! Que arruamentos! Um parafuso cáe nas lages, ás escuras: Collocam-se taipaes, rangem as fechaduras, E os olhos d'um caleche espantam-me, sangrentos. E eu sigo, como as linhas de uma pauta A dupla correnteza augusta das fachadas; Pois sobem, no silencio, infaustas e trinadas, As notas pastoris de uma longiqua flauta. Se eu não morresse, nunca! E eternamente Buscasse e conseguisse a perfeição das cousas! Esqueço-me a prever castissimas esposas, Que aninhem em mansões de vidro transparente! Ó nossos filhos! Que de sonhos ageis, Pousando, vos trarão a nitidez ás vidas! Eu quero as vossas mães e irmãs estremecidas, N'umas habitações translucidas e frageis. Ah! Como a raça ruiva do porvir, E as frótas dos avós, e os nómadas ardentes, Nós vamos explorar todos os continentes E pelas vastidões aquaticas seguir! Mas se vivemos, os emparedados, Sem arvores, no valle escuro das muralhas!... Julgo avistar, na treva, as folhas das navalhas E os gritos de soccorro ouvir estrangulados. E n'estes nebulosos corredores Nauseam-me, surgindo, os ventres das tabernas; Na volta, com saudade, e aos bordos sobre as pernas, Cantam, de braço dado, uns tristes bebedores. Eu não receio, todavia, os roubos; Afastam-se, a distancia, os dubios caminhantes; E sujos, sem ladrar, osseos, febris, errantes, Amarelladamente, os cães parecem lobos. E os guardas, que revistam as escadas, Caminham de lanterna e servem de chaveiros; Por cima, as immoraes, nos seus roupões ligeiros, Tossem, fumando sobre a pedra das sacadas. E, enorme, n'esta massa irregular De predios sepulchraes, com dimensões de montes, A Dôr humana busca os amplos horisontes, E tem marés, de fel, como um sinistro mar!
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