Ocidente

 
 
Quando do Ocidente o Sol se levanta
a água do mar que regressa à terra traz os que aí morreram
a água que dos rios que volta para o mar, devolve os que aqui faleceram     
e eu sei aquilo que a água recorda,
conheço por isso todos os males do mundo
nem eu nem ela podemos ignorar o passado...
e todo ele é maléfico, digno de nunca ter acontecido
os outros, dos metais aos animais, protegem-se encerrando as portas da perceção.
existindo como Josef K. ou Winston Smith até ao fim
talvez na morte as portas se escancara m e eles, aí, tenham percebido...
aquilo que a água sempre soube, me ensinou e não me deixa esquecer
com todo este conhecimento acordo num claustro
deitado sobre um tumulo... mas não dentro dele... apesar de estar aberto
é a morte que não me quer, outra vez
levanto-me e caminho devagar
porque sei que, também este templo, se vai desfazer quando o abandonar
deixei de fumar... o ultimo cigarro... incendeio outro.
estou sozinho numa “estação de caminho de ferro”
quando o comboio aparece sou só eu que nele entro
nada surpreendido verifico que a carruagem está vazia,
procuro um sitio para me sentar...
ó meu deus, um lugar à janela, como queria sempre quando era mais criança
estendo-me, relaxo e observo o ecrã em movimento que é todo meu
apesar de nele encostado não consigo ver através do vidro
levanto-me, mas mesmo de pé nada vejo
não percebo, lá fora é dia e aqui é noite cerrada
devia poder ver para fora, mas não
tento abrir a janela, não consigo
parto o vidro mas nada, não vejo nada para fora
frustrado sento-me
sinto frio
mudo de sitio
envergo um sobretudo e um fato que não são meus, mas não me importo
no bolso verde de um casaco preto encontro um comprimido que observo...
é amarelo, tem um aspeto dengoso e parece estar vivo...
calço luvas verdes (um verde mais escuro que o do bolso) para o esmagar,
desfaço-o e depois retiro-as
para  me desfazer delas procuro a janela partida, mas não a encontro
decido viajar de costas para o destino
e assim olho de frente para a plataforma por onde entrei
por ela entram mulheres: belas, magras, nuas e translucidas
passam por mim e ultrapassam a plataforma seguinte
levanto-me, com vontade...
mas para as puder seguir tenho de voltar atrás...
na plataforma anterior encontra-se uma data
28 de Junho 1966, o dia em que o Filho de Rosa Maria nasceu, completa hoje 48 anos.
28 de Junho 2014, é neste momento que a reconheço Luaname
e é ela que vai decidir se continuo, ou não, até a plataforma posterior
a porta para o exterior não se abre
claro, o comboio está em movimento... acredito eu
espero pela decisão dela...
permite-me continuar mas com condições:
barbear-me, tomar banho e vestir roupas justas e escuras, mas não completamente negras
aceito para poder continuar
procuro um relógio, mas como não existe tempo, não há mecanismos para o medir
na plataforma seguinte, de novo Luaname, oferece-me uma ampulheta e um cigarro
previne-me que o tempo está a valer, mesmo assim decido fumar
e verificar a carruagem que ultrapassei sem olhar
não há um lugar vago, nem jovens ou adultos...
só crianças e velhos em fase terminal, nenhum consegue consolar outro
não me importo, viro-me para a frente
aqui sim, está uma carruagem-bar
as bonitas e transparentes mulheres que por mim passaram aqui se encontram
o Filho de Rosa Maria também, parece-se comigo
serei eu o Pai do anticristo?
não, ele é mais novo, mais do que treze meses...
o período da gestação e fecundação
não posso ser Pai dele... ou não é ele o anticristo
tento regressar, para pensar, há carruagem anterior...mas não consigo,
de regresso àquela que saí encontro um porteiro
rosa-pele e roxo-roupa
nada me diz mas acompanha-me com o olhar
de novo na carruagem-bar, sento-me, sinto-me bem e quero sair
mas não sei como,
estou na carruagem-califórnia
ótimo sitio para estar
o cheiro da relva cortada das alcatifas do comboio
estou no céu mas quero sair
ou no inferno mas quero ficar
peço vinho, mas aqui desde 1969 não há
quero regressar, mas não consigo
para ultrapassar outra plataforma vendo a alma,
porque nela não acredito, considero o preço baixo
mas assino, assassino e volto a assinar... mas a porta não   abre
peço mais bebidas e enquanto espero sentado no bar...
percebo delfins e serafins a bailar
há volta duma arcanjo que nunca foi mãe
da carruagem-califórnia não consigo sair, só posso continuar
espero, e para isso peço mais bebida há mulher que me serve
os espíritos que me cercam aproximam-se
e assim de decido... vou passar sozinho para a carruagem seguinte
também não tinha ninguém para me acompanhar
... ...
aqui pode-se beber e fumar
como lá atrás
... ...
mas aqui dentro tudo é enorme
o diâmetro do lustre é maior que o comprimento da carruagem
os espelhos são mais largos do que as imagens que refletem
mas não existem, como as mulheres que parecem reais
e realmente satisfazem os que nelas querem acreditar
será que foi aqui?
perto da cabine do destino, que Jack Torrence matou o filho e a mulher?
será que valeu a pena?
será que encontrou o que desejava?
talvez eu o imitasse se família possuísse
pela duvida, pelo não... ...
prefiro viver com a minha loucura, sozinho
sento-me no centro do salão que é muito maior que todo o comboio que me transporta
a mim, que não possuo valores, tudo o que me pedem é demais
procuro esquecer com absinto e LSD25
o LSD25 e o absinto que recordo...
mas não consigo... porque Opacíria não o permite
de novo, eu e o Jack... bebemos
com o barman e as odaliscas a seduzirem-nos
discutimos, os dois e com quem queira, partilhar uma conversa devassa e provavelmente inconsequente
a não ser que se identifique alguém ausente
já aconteceu e sei que se vai repetir... como o passado que volta
primeiro como tragedia... e depois comédia !!!
alvitro, talvez como remédio... mas não sou Engels ou Marx...
desejo saber mais, quero, mas não atinjo tal conhecimento
entre o sexo e o álcool as opiniões dividem-se, e sucedem-se... mas com variantes
quem não sabe o que aqui já foi escrito...
que não tente perceber, já é demasiado tarde para conhecer...
aquilo que não acredita é o que o vai executar
e aquilo que crê, não só permite como aplaude.
acordo na cadeira em que adormeci
o que me despertou foi o silêncio
ou fiquei surdo, ou o comboio parou
levanto-me e dirijo-me ao bar
caminho como um marinheiro de alto-mar em terra firme
foi o trem que parou comigo ainda bêbado
surdo não estou porque ouço a musica dos filmes mudos
peço para comer mas só me servem de beber
alterno o café e o cognhaque, varias vezes
até que começo a escrever numa maquina que é um inseto
teclo por baixo das asas
o que escrevi é impresso em papel persa
que simultaneamente é editado e devorado pelo inseto
que cresce e cresce e transforma-se num maior...
parece-me sentir um esqueleto interno e pernas a aparecer
as teclas da maquina de escrever suavizam-se ao meu toque
“aquilo” já toca no mesmo chão que me encontro
por isso empurro a cadeira em que me sentava
são pés descalços que se encontram à frente dos meus calçados
toco, agora, não teclas rijas, mas uma pele perfeita... as costas de uma mulher nova
... que se tenta voltar
mas eu não permito até ela acabar de se transformar
usa os braços e as mãos para proteger e afastar o basto peito do frio balcão onde se encontra
agora completa, lábios e cabelos
permito que se volte e me enfrente
beijo-a como nunca fiz com ninguém
beijo-a assim outra vez
e, de novo, debruço-a sobre o balcão
e sodomizo-a e gorrmorrizo-a
tantas as vezes necessárias para a levar do prazer ao sofrer...
... acordo de novo
afinal o comboio não parou
e eu não caminho à marinheiro
estou no mesmo sitio, e é aqui que acendo um cigarro
peço um café e o jornal do dia...
quando o empregado mos entrega observa-me de forma pouco comum
consigo imaginar porquê...
poucos caminham, como eu, num comboio parado... no tempo
como podia ele escolher o jornal do dia?
o que me entregou tem todas as paginas e letras em branco, sem uma única fotografia
mas o café é preto e amargo
amargo, não azedo como o vinho que bebo, quando de ti me lembro
a estação aproximasse mas o comboio não abranda
eu sim, mas não o suficiente, por isso tenho de continuar...
até onde o Sol se põe... ...
Quando o Sol se põe no Oriente
M.PIPER
 
 
 
 

 

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