QUOTIDIANOS SETUBALENSES

QUOTIDIANOS SETUBALENSES

Um regresso ansioso e desejado à Cidade de Setúbal, onde abraços abertos de irmãs e irmãos me recebem afectuosamente. No pensamento, uns versos do meu Pai, inserido no livro “Pater Familias”: “Em Setúbal eu encontrei/O que há muito procurava/ Só aqui me realizei/ E aos que mais amava/ (…) Recebe-me de braços abertos/Quando ao sepulcro descer/Olha pelos meus filhos e netos/Não os deixes de proteger…”

Estou no Cais dos Pescadores, olhando o Rio Azul e a recordar-me que dali partiu para o Oriente S. Francisco Xavier, Padroeiro da cidade setubalense. Este histórico acontecimento está bem visível no majestoso monumento ali bem perto, numa capela no centro da cidade. Falo de um painel em azulejaria da ex-Igreja da Misericórdia, comemorativo em 1991 dos 450 anos da sua passagem e partida.

No grande largo de Nossa Senhora do Cais, enorme multidão aguarda o Círio Fluvial de Nossa Senhora do Rosário de Tróia, acompanhada por várias embarcações engalanadas a fazer-lhe a guarda de honra. São as tradicionais festas da comunidade piscatória setubalense. A imagem, depois de ser saudada, regressa à sua Capela na Caldeira, junto às Ruínas Romanas de Tróia.

Numa manhã, visito o Mercado do Livramento (Praça), um dos ex-libris da Cidade do Sado, onde aos fins-de-semana acorrem inúmeras excursões para a visitar e comprar frutas, hortaliças, carnes e o melhor peixe do mundo. Em fundo há um enorme painel em azulejos de tonalidades azuis e brancas com todas as actividades regionais piscatórias e agrícolas de outros tempos, alguns ainda muito actuais.

Subo em direcção à Biblioteca Municipal e no rés-do-chão deparo-me com uma exposição de pinturas a óleo, sob o tema “Sopros de Alma”, de Maria do Carmo Malveiro Candeias. Recolho um poema da sua autoria, com simbologia clássica, que leva o título “Lenda de Amor”: “Sina de Amor…/Em desmaio correu/Verdade de um sonho é seu recordar/Divino e real/Foi o Amor que renasceu.”

Passo por fábricas romanas de salga, junto ao Largo da Misericórdia, e vou na direcção do Miradouro de S. Sebastião, com paisagens únicas - Bairro das Fontainhas, Arrábida, Rio, Mar, Tróia… Passo pelo antigo Colégio dos Jesuítas, há 150 anos dirigido pelo Padre Jesuíta Joaquim da Silva Tavares, “um sábio do mundo” natural de Cardigos, Mação. Por paradoxal que pareça envolve-o o Largo dos Trabalhadores da República.

Entro no Museu do Trabalho de Michel Giacometti e observo atentamente uma exposição fotográfica de figuras humanas, realizada por Michel Claret, sob o tema “Aqueles do Rio Azul.” Despertam a minha atenção as mãos e os rostos das operárias da indústria conserveira de Setúbal. Vejo rostos negros, rugosos e mãos calejadas que recebiam salários de fome e miséria. No segundo piso, crianças aprendem a arte de enlatar conservas. Actualmente regressámos a esses tempos.

Bato pela terceira vez à Porta da Casa Episcopal e ninguém responde. Queria dar um abraço ao quase centenário Padre Adalberto, ex-pároco da Comporta, natural de Manteigas.

Na Casa do Bocage, um pouco abaixo, escancarada de par a par, atende-me a simpática funcionária, D. Isilda, que me encaminha para uma exposição “BOCAGE – POLÉMICO – DISCUTIDO.”

António José Saraiva e Óscar Lopes escreveram que ”Bocage é a personalidade mais representativa de uma crise que, mais do que o gosto e o estilo, atinge o próprio teor da vida literária e os preconceitos arcádicos e iluministas (...) o que melhor distingue Bocage é a matéria psicológica que traz pela primeira vez à poesia portuguesa: o sentimento agudo da personalidade, o horror do aniquilamento na morte.”

Atravesso o Cemitério de Nossa Senhora da Piedade e recolho-me em oração e meditação junto à campa dos meus saudosos Pais. Não muito longe avisto o dormitório eterno de Zeca Afonso, que uma cameleira com frutos guarda dia e noite.

Assisto à Eucaristia da Solenidade de Nossa Senhora da Assunção no Centro Social e Paroquial de D. Manuel Martins, nas vizinhanças do Bairro da Bela Vista. O Celebrante, Padre Constantino, admirado e respeitado por aquelas gentes, tem uma obra social de muito mérito e coloca em prática a mensagem do Evangelho. Saúda os presentes pela coragem de deixarem de ir à praia para estarem ali presentes. À saída os meus olhos fixam uma fotografia de D. Manuel Martins, percorrendo a baixa setubalense de bicicleta.

Encontro agendado com Fernando Firmino, um homem de cultura, com raízes familiares profundas em Silvares (Fundão) e na Aldeia de São Francisco (Covilhã), numa pastelaria que nos recorda o sapateiro e profeta Bandarra de Trancoso.

Com uma paisagem deslumbrante virada para o Sado nas Escarpas do Bairro Santos Nicolau a conversa foi cultural, recordando os amigos fundanenses…

Entrega-me diversa documentação histórica das suas visitas a Paris, onde tem familiares de Moscovo e da Sardenha: Crónicas e Entrevistas sobre o Maio/68, Exposições de Gilles Caron Paris/68, Arquivos do Poder, os Governadores Parisienses, o Canal Suez, as Catedrais de Moscovo e postais ilustrados da Sardenha de Giuseppe Garibaldi.

Fixo a minha atenção na cópia de um texto de Arnaldo de Matos sobre o Arcebispo Calaça Mendonça, “um poeta religioso notável, como a literatura portuguesa não conhecia desde o Século XV. Tolentino Mendonça escreve para um buraco negro, de onde as palavras ressaltam como raios de luz.”

Para alicerçar ainda mais a nossa amizade, nada melhor que um Moscatel de Setúbal, que nos transmite nostalgias, alegrias, memórias antigas, sentido de pertença e muitas emoções…

Há muitos anos que não ia a Sesimbra passar uma manhã de banhos no mar. Percorro a EN10, com paisagens de Aldeia Grande, Quinta do Alcube, Vila Nogueira de Azeitão, o entreposto e Sede da Transportadora Setubalense, vinhedos perfilados como soldados em batalhões, oliveiras centenárias, povoações com nomes da natureza, Maçã, Cotovia, Bacalhoa…

Junto à praia de Sesimbra erguem-se para o céu urbanizações cavadas nas íngremes rochas, a subir por escarpas marítimas. Na praia, duas bibliotecas itinerantes com sabor a mar cultural. Lá no alto, vigilante, o Castelo de Sesimbra, que com o de Palmela e de Setúbal forma a trilogia da Região Turística dos Três Castelos.

Sábado. Percorro diversos trilhos, o do Mercado do Livramento, onde outrora passava a ribeira a céu aberto com esse nome. Muita gente…muito peixe capturado no mar…

Praça do Bocage, Adega dos Passarinhos, os Balneários Paulo Borba, Garagem dos Belos, dali parti e cheguei muitas vezes, e páro na Escola Secundária Sebastião da Gama, ex-Escola Comercial e Industrial de Setúbal. Ali frequentei durante um ano curso nocturno de dactilografia e estenografia.

Na fronteira norte, piso o Parque do Bonfim, deparo-me com o busto de homenagem a António Maria Eusébio, “O Cantador de Setúbal”. Não muito longe, o Monumento em aço inoxidável, a lembrar o Centenário da Fundação do Escutismo, um projecto de Miguel Garrana com execução de Joaquim Alves Fernandes, onde Baden Powell nos lembra que “o melhor meio para alcançar a felicidade é contribuir para a felicidade dos outros. Procurai deixar o mundo melhor que o encontrastes.”

Espalhadas por aquele apetecível manto verde arborizado, há grandes figuras humanas setubalenses em cerâmica, da autoria da artista Maria Pó.

Cruzo-me com um Frade Arrabino, representado Frei Martinho, que no Convento da Arrábida dizia: ”se não estou no Céu, estou nos seus arrabaldes.” Segue-se a Luísa Todi, cantora lírica que as Cortes Europeias conheceram e ouviram. O Descarregador de Peixe, uma imagem iconográfica setubalense, toda a História de Setúbal passa por essa singular e popular figura. A Dona Vinha, ilustre arquitecta das vinhas de excelência da Península de Setúbal. O Observador das aves, de binóculos nas mãos, no moinho da Maré Mourisca, um santuário de aves…A Maria Baía, uma evocação dos inúmeros laranjais de Setúbal, de cuja casca dos frutos se fazia o célebre doce setubalense. Bocage, um dos maiores poetas da literatura, libertário, lírico, transgressor dos poderes instituídos. A terminar a figura do Vitoriano, em homenagem a atletas, milhares de sócios e simpatizantes do V.F.C. – O Vitória de Setúbal.

Continuando trilhos, deixo em suspenso um livro de Lídia Jorge e passo para a Lídia do Faralhão, servidora de peixe maravilhoso. Em família e amigos, saboreamos com prazer sardinhas em quantidade, qualidade, simpatia e bom preço. Vamos lá voltar…

 

António Alves Fernandes

Agosto/2018

Setúbal

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