VERSÕES D'OSSIAN

 

AO SOL

(FRAGMENTO DO POEMA DE «CARTHON»)


Ó tu que rolas n'esse campo ethereo,
Semelhante ao broquel dos meus passados,
D'onde vem os teus raios, sol brilhante?
D'onde recebes tua luz eterna?
Tu despontas solemne e magestoso;
As estrellas se escondem quando passas,
A lua fria e pallida mergulha
Nas vagas do occidente; e tu caminhas
Solitario nos céos. Quem na carreira
Te póde acompanhar? Os altos robles
Baqueiam das montanhas, e ellas mesmas
Sob o pêso dos annos se arruinam;
O oceano ora se eleva, ora se abaixa;
A propria lua na amplidão fenece:
Só tu caminhas sempre, e sempre o mesmo,
E de tanto fulgor te vanglorías!
Quando a borrasca entenebrece o mundo,
Quando rolam trovões, e adeja o raio,
Tu olhas d'entre as nuvens sobranceiro,
E sorris da tormenta! Mas debalde
Olhando Ossian procuras, que os teus raios
Ossian não mais verá, quer teus cabellos
Em nuvens orientaes flammejem soltos,
Quer descendo os espaços estremeças
Ás portas do occidente. Sol, um dia
Talvez como eu serás; talvez, quem sabe?
Dos annos teus acabarás o gyro,
E insensivel á voz da madrugada,
Em tuas nuvens ficarás dormindo.
Mas folga, folga entanto magestoso
No verdor de teus annos: a velhice
É solitaria e triste; é semelhante
Ao clarão melancholico da lua
Quando brilha entre nuvens, quando o norte
Revôa na planicie, e o caminhante
Pára convulso e de pavor transido.




COLMA

(FRAGMENTO DOS CANTOS DE SELMA)


Era em Selma e nas festas. Começava
Dos bardos o cantar: eis se adianta
D'olhos fitos no chão, banhada em pranto,
A doce, a amavel Minona. Os cabellos
Lhe ondeavam soltos ao soprar da briza
          Que vinha das montanhas.
As almas dos heroes se enterneceram
          Mal que as primeiras notas
De seu canto dulcissimo soaram.
Muitas vezes o tumulo de Sálgar,
E o tumulo de Colma tinham visto,
Da triste Colma abandonada ás queixas
Na collina deserta. Um dia Sálgar
Promettêra de vir e não viera;
Em torno d'ella já descia a noite:
          Ouvi da triste Colma
          A queixa solitaria:


«É noite! sósinha no monte elevado
«Dos ventos ruidosos escuto o bramir...
«Sombria a torrente sussurra a meu lado...
«Em triste abandono me é doce carpir.
«Descobre-te, ó lua, refulge brilhante!
«Estrellas formosas, mostrae-vos tambem!
«Guiae os meus passos ao sitio distante,
«Onde ora cançado repousa o meu bem!


«Ó Sálgar, ó chefe dos montes valente,
«Quebraste a promessa que em balde te ouvi...
«O tronco, os rochedos, a voz da torrente
«São estes, ó Sálgar, mas faltas aqui...
«Deixei por seguir-te na dôr abysmados
«O irmão que estremeço, meu pae que olvidei:
«São velhos os odios dos nossos passados,
«Mas eu, ó meu Sálgar, jámais te odiei.


«A lua calada fulgura na selva,
«Nas aguas, nas rochas, com doce clarão...
«Quem jaz em distancia dormindo na relva?
«És tu, ó meu Sálgar? és tu, meu irmão?
«Fallae, meus amigos: immoveis, deitados,
«Porque inda em silencio me não respondeis?
«Ai mortos! ai mortos! em sangue banhados!
«E tintos de sangue seus ferros crueis!


«Mataste, ó meu Sálgar, o irmão de minha alma!
«E tu, doce amigo, tu jazes tambem!
«Perdi-vos: só resta chorar-vos sem calma...
«Como eu vos amava não ama ninguem.
«Tu eras formoso nas tuas collinas:
«Elle era terrivel das luctas no ardor.
«Quem vossas espadas guiou assassinas?
«Quem pôde inspirar-vos da morte o furor?


«Mas, ai! já não ouvem meus longos gemidos...
«Na terra gelada gelados estão...
«Fallae d'entre as nuvens, phantasmas queridos,
«Que as vossas palavras medonhas não são!
«No monte sombrio que além se divisa,
«Dizei-me a caverna que triste habitaes!...
«Calados! calados! nem sôpro da briza,
«Nem voz da tormenta me traz os seus ais!


«Sentada no monte, c'os olhos absortos,
«Espero chorando do dia o raiar.
«Erguei-lhes as tumbas, amigos dos mortos,
«E n'ellas a Colma guardae um logar!
«Passou de meus dias o sonho tão ledo,
«Passou para sempre! não mais viverei...
«Ao pé da torrente que banha o rochedo,
«Oh! dae-me o repouso d'aquelles que amei!


«De noite, na serra batida dos ventos,
«Meu triste phantasma de pé surgirá,
«E ao som da rajada soltando lamentos,
«No meio das nuvens gemendo errará.
«Ao longe o viandante nos bosques perdido
«Ouvindo-lhe as queixas terá compaixão;
«As queixas, o pranto de Colma sentido
«Chorando os amigos que mortos já são.»


Tal foi, tal foi, ó Minona, o teu canto,
Doce filha de Tórman. Tristes eram
Nossas almas por Colma, e em nossas faces
Deslisavam as lagrimas em fio.




FINGAL

(CANTO PRIMEIRO)


Assentado de Tura junto aos muros
Estava Cuthullin, perto do tronco
De folhas rumorosas. Tinha a lança
Encostada ao rochedo, e aos pés o escudo.
No poderoso Cárbar meditava,
N'esse heroe que vencêra: eis lhe apparece
Móran, filho de Fithil, sentinella
Do procelloso oceano. «Ergue-te, disse,
«Ergue-te, ó Cuthullin! Eu vi ao largo
«Os navios do norte. Numerosos
«Os inimigos são; muitos os bravos
«Do potente Swáran.»
                         «Sempre tremes,
«Sempre, ó filho de Fithil, lhe responde
«O bellicoso chefe, e assim augmentas
«As forças do inimigo. Fíngal era,
«Fíngal, rei dos desertos, que o soccorro
«Traz a Erin dos ribeiros.»


                         «Vi seu chefe,
«Replíca Móran, qual rochedo avulta!
«Como um pinho sem rama é sua lança!
«Como a lua nascente o seu escudo!
«Assentado na praia semelhava
«Nuvem que pousa no calado serro!
«--Muitos, ó rei de heroes, muitos, lhe disse,
«Nossos guerreiros são. Chamam-te o forte,
«Mas os fortes em guerra não tem conta
«Junto ás muralhas da nublosa Tura.--
«Com estrondoso assento semelhante
«Ao da vaga na rocha, elle me brada:
«--Resistir-me quem ousa? Os mais valentes
«Aos meus golpes succumbem. Só podéra
«Fíngal, o rei de Selma, elle sómente,
«Meu impeto arrostar. Já combatemos
«Uma vez em Malmor. Com nossas plantas
«Volviamos a terra; as duras rochas
«Despegadas cahiam; as torrentes
«Recuavam de susto murmurando.
«Tres dias combatemos; os guerreiros
«Nos olhavam ao longe, e estremeciam.
«Diz Fíngal que cedi, que o rei do oceano
«Cahiu por terra ao quarto: o rei do oceano
«Resistiu sempre firme! Ceda-lhe hoje
«O torvo Cuthullin! ceda ao que é forte
«Como as tormentas de seu patrio berço!--»


«Oh! não, lhe torna o chefe; a nenhum homem
«Cuthullin cederá, mas ha de em campo
«Triumphar ou morrer! Toma esta lança:
«Parte, ó filho de Fithil, vae com ella
«Bater de Semo no sonoro escudo!
«De Tura á porta vêl-o-has suspenso.
«Sua voz estridente é voz de guerra:
«Hão de ouvil-a os heroes e obedecer-me.»


Partiu. Bateu no escudo. Espavorida
Tremeu na selva a corça; em torno os montes,
Os concavos rochedos retumbaram.
Dos ingremes penhascos saltam logo
Curach, e Cónnal de sanguinea lança.
Bate de Grúgal o ancioso peito;
O filho de Favi deixa a caçada;
«É o escudo da guerra!» brada Rónnar;
«De Cuthullin a lança!» brada Lúgar,
Empunha, ó Cálmar, a soante espada!
Ergue-te, ó Puno, temeroso chefe!
Deixa, ó Cairbar, o ramoso Cromla!
Eth, aproxima-te; á planicie desce
Das torrentes de Lena! Os alvos peitos
Mostra, ó Cathol, atravessando o plaino
Sussurrante de Mora; os peitos alvos
Como as espumas que arremessa a vaga
Aos rochedos de Cúthon!
                         Eis os chefes!
Eil-os soberbos dos antigos feitos!
Inflammados recordam as proezas,
As glorias do passado. Os olhos torvos
Chammejantes revolvem, procurando
Inimigos da patria. As mãos valentes
Descançam nas espadas. Cada vulto
Lampeja armado de brunido ferro.
Brilhantes são os chefes da batalha
Co'as armas de seus paes! Sombrios, torvos
Os seguem seus heroes, como a caterva
De pluviosas nuvens segue os igneos
Meteóros do céo. Por todo o campo
Resôa o estrondo d'armas, e d'envolta
Os uivos dos mastins; de quando em quando
Rompem cantos de guerra, e o alarido
Se repercute no fragoso Cromla.
Sobre o plaino de Lena estão postados
Como a nevoa do outomno sobre o outeiro,
A movediça nevoa tenebrosa
Que aos céos levanta a retalhada fronte.


«Filhos dos valles, Cuthullin exclama,
«Caçadores do gamo, eu vos saúdo!
«Uma nova caçada nos convida:
«O inimigo se adianta como as vagas
«Que se arrojam sombrias sobre a costa.
«Combateremos nós, filhos da guerra,
«Ou cederemos nossa Erin viçosa
«Aos filhos de Lochlin? Responde, ó Cónnal,
«Tu primeiro entre os homens, tu que partes
«Os escudos na guerra! Já mais vezes
«Com Lochlin pelejaste: empunhar queres
«A lança de teu pae?»
                         «De ha muito sabes,
«O chefe lhe responde, se nas guerras
«Minha lança fulgura. Seu deleite
«É ferir nos combates, é banhar-se
«No sangue d'inimigos. Mas se o braço
«Arde por combater, sereno o peito
«É pela paz d'Erin. Ó tu na guerra
«De Cormac o primeiro, observa ao longe
«A frota de Swáran. São mais densos
«Os seus mastros na costa do que os juncos
«Na lagôa de Lego. Os seus navios
«São florestas nublosas, cujos troncos
«Cedem a espaços ao soprar do vento.
«Os seus chefes guerreiros não tem conta.
«Cónnal é pela paz. O proprio Fíngal
«Evitára a peleja, elle que sabe
«Dispersar os heroes como dispersa
«O vento os sons de Colna quando a noite
«Carregada de nuvens cobre o outeiro.»


«Ah! foge, homem de paz, foge! lhe brada
«Cálmar, filho de Matha. Vae, regressa
«Aos teus montes calados onde a lança
«Jámais brilha na guerra! Vae, acossa
«O veado do Cromla! com teus dardos
«Fere a corça de Lena! Tu, em tanto,
«Tu, ó filho de Semo, d'esta guerra,
«Ó arbitro supremo, abate o orgulho
«Dos filhos de Lochlin! Suas fileiras
«Rompe atrevido! Que nenhum navio
«Das regiões da neve ouse de novo
«Galgar as ondas d'Inistor sombrias!
«Negros ventos d'Erin, rugi! Erguei-vos,
«Ó turbilhões de Lara! Que entre as nuvens
«Me espedacem as iras dos phantasmas
«Se ha prazer para Cálmar como a guerra!»


«Quando, ó filho de Matha, lhe responde
«Cónnal com lenta voz, quando me viste
«Aos combates fugir? Embora obscuro
«Seja o nome de Cónnal, sempre á guerra
«C'os amigos corri, sempre dos fortes
«O triumpho ajudei. Mas a ti fallo,
«A ti, filho de Semo, e tu me escuta.
«Ametade das terras e presentes
«Dá em troca da paz, até que Fíngal
«Aporte ás nossas praias. Mas se a guerra
«Desejas antes, minha lança e espada
«Erguerei satisfeito! os inimigos
«Correrei a affrontar! e como sempre
«Brilhará o meu animo na lucta!»


«Eu, tornou Cuthullin, amo o som d'armas
«Como a voz do trovão acompanhado
«Dos chuveiros do estio. Vossas tribus
«Ide pois ajuntar para que eu possa
«Vêr os filhos da guerra. Que elles passem
«Brilhantes como o sol antes que o vento
«Accumulando as nuvens remurmure
«Nos carvalhos de Mórven. Mas que é feito
«Dos amigos que eu tinha? Onde os que ajudam
«Meu braço nos perigos? Onde páras,
«Ó Cathba d'alvo peito? Onde te escondes,
«Nuvem da guerra, varonil Duchómar?
«Tu, Fergus, onde estás? porque me deixas
«No dia da tormenta? Eil-o que chega!
«Fergus, filho de Rossa, tu primeiro
«No prazer dos festins, braço da morte,
«Vens de Malmor acaso? vens correndo
«De tuas serras como leve gamo?
«Salve, filho de Rossa! que tristeza
«Assombra a alma da guerra?»
                         «Quatro pedras,
«Responde o chefe, a sepultura cobrem
«Do valoroso Cathba; e já na terra
«Dorme tambem o varonil Duchómar.
«Tu eras para Erin, eras, ó Cathba,
«Como um raio do sol! e tu, Duchómar,
«Como a nevoa do Lano que no outomno
«Rola sobre a planicie, e leva a morte
«A viventes sem conta! Ó Morna, ó bella
«Entre as mais bellas, socegado é o somno
«Que dormes junto á rocha! Eis-te cahida
«Entre as sombras da morte, como a estrella
«Que se esvae no deserto, e o caminhante
«Deixa saudoso de seu raio esquivo.»


«Ah! conta-nos, lhe diz de Semo o filho,
«Conta-nos, Fergus, como foram mortos
«Os guerreiros d'Erin. Cahiram ambos
«Em combate de heroes? Dize-nos, Fergus,
«Porque é que a terra nos esconde os fortes?»


«Cathba, lhe torna o chefe, cahiu morto
«Aos golpes de Duchómar; cahiu junto
«Do roble das torrentes. Exultando
«O fero vencedor foi ter com Morna
«Á caverna de Tura.--Amavel filha
«Do valente Cormac, elle lhe disse,
«Porque saudosa no fragoso serro,
«Na caverna da rocha venho achar-te?
«O ribeiro murmura; a arvore annosa
«Geme ao sôpro do vento; o lago é turvo;
«Negras as nuvens que no céo revôam!
«Mas tu és como a neve da planicie;
«Como o vapor do Cromla é teu cabello,
«Como o vapor do Cromla quando brilha
«Aos raios do poente! São teus peitos
«Como os lisos rochedos que se avistam
«De Branno dos ribeiros; são teus braços
«Como as alvas columnas espalhadas
«Pelas salas de Fíngal!--»
                         «--D'onde inquieta,
«Lhe diz a virgem de formosas tranças,
«D'onde vens, ó Duchómar, tu dos homens
«O mais torvo e sombrio? Carregado
«Trazes o rosto, e ensanguentada a vista.
«Descobriu-se o inimigo? Que noticias
«Trazes tu lá do mar?--»
                         «--É da montanha
«Que eu venho, elle responde; da montanha
«Dos escuros veados. Tres cahiram
«Traspassados por mim; tres foram mortos
«Por meus ageis lebreus. Um d'elles tinha
«Magestosa a cabeça, e os pés movia
«Ligeiros como o vento. Amo-te, ó bella!
«Para ti o matei: não m'o regeites!--


«--Ah! foge, homem sinistro! ella lhe torna.
«Carregado e terrivel tens o rosto,
«E duro o peito como rocha dura!
«Tu, ó filho de Tórman, tu, ó Cathba,
«És meu unico amor! és a meus olhos
«Como um raio de sol em tempestade!
«Oh! dize-me se o viste, o joven bello
«Na serra dos seus gamos, pois ha muito
«Que n'este sitio o espero!--»
                         «--E largo tempo
«O esperáras, ó Morna, elle responde!
«Olha esta espada nua: aqui o sangue
«De Cathba ainda escorre. Cahiu junto
«Da torrente de Branno: sobre o Cromla
«Lhe erguerei o sepulchro. Volta os olhos,
«Volta-os para Duchómar: é seu braço
«Forte como a tormenta.--»
                         «--Morto, exclama
«Em desespêro a angustiada virgem,
«Morto o filho de Tórman! nos seus montes
«Extincto o joven de nevado peito!
«O primeiro em caçadas, o inimigo
«Dos guerreiros do oceano! Eu te detesto,
«Ó Duchómar cruel! Dá-me essa espada!
«N'esse barbaro ferro quero ao menos
«Vêr o sangue de Cathba!--»
                         «--Elle movido
«De suas queixas, lhe confia a espada,
«E ella no peito varonil lh'a embebe.
«Bem como se despenha a ribanceira
«Da torrente da serra, elle baqueia.
«Na agonia mortal estende á virgem
«A mão convulsa, e diz: Por ti fui morto
«No verdor de meus annos. Sinto a espada
«Fria, ai, fria no peito! Meu cadaver
«Entrega á bella Moina: eu era o sonho
«Das noites d'essa virgem. Compassiva
«Meu sepulchro ha de erguer; e ha de o meu nome
«Cantar o caçador. Mas vem do peito,
«Oh! vem tirar-me este gelado ferro!--
«De lagrimas banhada acode a virgem,
«O agudo ferro extrahe, e eil-o que a furto
«O crystallino seio lhe atravessa.
«Vacillando ella cahe; o sangue em ondas
«Lhe tinge os braços niveos, a madeixa
«Desgrenhada lhe roja; e na caverna
«Seus extremos gemidos echoaram.»


«Paz, disse Cuthullin, paz e descanço
«Ás almas dos heroes! Sublimes foram
«Seus feitos de valor! Que elles me cerquem
«Pairando sobre as nuvens! que eu lhes veja
«As guerreiras figuras! Então forte
«Nos perigos serei; será meu braço
«Como o fogo do céo! E tu, ó Morna,
«Sobre um raio da lua me apparece!
«Ás horas do descanço quero vêr-te
«Quando em paz estiver, quando cessarem
«Os tumultos da guerra. Mas as hostes
«Ordenae, meus amigos, e marchemos
«Para a guerra d'Erin! Tomae por norte
«Meu carro de batalha! extasiae-vos
«Ao rumor do seu curso! Eia, a meu lado
«Tres lanças collocae! De meus cavallos
«O galope segui! Que eu possa afoito
«Com meus socios contar quando esta espada
«Relampejar nas sombras da peleja!»


Como espumea torrente que se arroja
Do tenebroso Cromla, quando rola
O trovão pelos céos, e a escura noite
Impera na montanha, quando os rostos
Dos lividos phantasmas apparecem
Nas fendas da borrasca; assim furiosa,
Vasta, e medonha se arremessa a turba
Dos guerreiros d'Erin. Na frente avança
O valoroso chefe, semelhando
A baleia do oceano acompanhada
Do marulho das ondas, ou torrente
Que arrasta as aguas através dos campos:
Aos filhos de Lochlin chega o ruido
Como o surdo rumor da tempestade:
No pesado broquel bate Swáran
Chamando o filho d'Arno. «Que sussurro
«Lhe diz, é este que nos montes sôa,
«Semelhante ao zumbido que levantam
«Os insectos da tarde? Acaso descem
«Os guerreiros d'Erin? Rugem acaso
«Os ventos na floresta? É assim que ás vezes
«Elles soam no Górmal quando querem
«Das minhas vagas açoitar o dorso.
«Sobe já, filho d'Arno, sobe ao monte,
«E estende a vista pelo escuro plaino.»


Partiu. Em breve regressou tremendo.
Em torno os olhos revolvia inquieto;
O coração lhe palpitava ancioso;
As palavras a custo proferia
Cortadas, vagarosas. «Surge, disse,
«Surge, ó filho do oceano, altivo chefe
«Dos escuros broqueis! Eu vi a negra
«Caudalosa torrente da batalha!
«As movediças forças numerosas
«Dos guerreiros d'Erin! Já temeroso
«Como a chamma da morte se aproxima
«De Cuthullin o bellicoso carro!
«Na parte posterior é recurvado
«Como a vaga ante a rocha, ou como a nevoa
«Doirada pelo sol. São embutidos
«De pedraria os lados, e resplendem
«Como em torno da barca ondas nocturnas.
«É de polido teixo fabricado
«O comprido timão; e o liso assento
«D'osso branco e macio. Tem os bordos
«Recheados de lanças, e no fundo
«O degrau dos heroes. Diante do carro,
«Á dextra parte, relinchando avulta
«O d'amplas crinas, largos peitos, forte,
«Agil, fero cavallo da montanha.
«Estrondoso galopa; a crina esparsa
«Pelo pescoço, os turbilhões imita
«Do vapor que se estende pelas rochas.
«É de brancas espadoas, e chamado
«Sulin-Siffada. Do outro lado, o esquerdo,
«Resfolga ardente o d'elevado collo,
«De raras crinas, duros pés, ligeiro
«Filho da serra, saltador ginete.
«Tem por nome Durósnnal entre os filhos
«Da guerra procellosa. Os duros freios
«Entre frocos d'espuma resplandecem.


«Cheias de pedraria as finas redeas
«Batem no collo dos frisões soberbos,
«Que ligeiros resvalam na planicie
«Como o vapor nos paludosos valles.
«Seu rapido galope é como a fuga
«Do trepido veado, e irresistivel
«Como a descida da aguia sobre a prêsa.
«Dentro do carro se divisa armado
«De rijas peças o valente chefe.
«Chama-se Cuthullin, progenie illustre
«De Semo, rei das taças. Tem córado
«O bello rosto como este arco liso.
«Sob as negras arcadas dos sobr'olhos
«As pupillas azues amplas revolve.
«Como uma chamma lhe fluctua a coma
«Quando se inclina ao manejar a lança.
«Ah! foge, rei do oceano! Elle se adianta
«Como vasta procella que rugindo
«Corre ao longo do val!»
                         «Fugir? e quando
«Fugir me viste? respondeu Swáran.
«Quando medroso se esquivou meu braço
«Á batalha das lanças? Quando, ó chefe
«D'alma pequena, recuei eu nunca
«Em frente do perigo? Eu já do Górmal
«Encarei as tormentas quando as ondas
«Espumavam raivosas; já das nuvens
«Arrostei os combates: hei de agora
«Ante um homem tremer? Oh não; nem Fíngal
«Me podéra assombrar. Eia ao combate,
«Ó valentes guerreiros! Rodeae-me
«Como turbidas aguas! Cercar vinde
«De vosso rei o chammejante gladio!
«A firmeza mostrae das nossas rochas,
«D'essas montanhas que a tormenta encaram,
«E oppõe ao vento os pinheiraes sombrios!»


Como duas procellas que no outomno
Correndo oppostas de diversos montes
Se avisinham medonhas, assim torvos
Uns contra os outros os heroes correram.
Como duas torrentes que á planicie
D'altas rochas descendo as bravas ondas
Encontram restrugindo, assim ruidosa,
Fera, e terrivel se encontrou a gente
De Lochlin e Inisfail. Chefe com chefe,
Homem com homem se travou em lucta.
O ferro bate no sonoro ferro;
Abrem-se os capacetes; jorra o sangue;
As cordas zumbem nos polidos arcos;
Atravessando o espaço as frechas voam;
As lanças descem como a luz que doira
Os véos da noite em alongadas curvas.
Como o rumor do oceano quando as vagas
Encapella raivoso, como o extremo
Rebramar do trovão, assim resôa
O fragor do combate. Quando mesmo
Para a lucta cantar alli viessem
De Cormac os cem bardos, ao estrago
Dos cem bardos a voz não bastaria.
Muitas foram as mortes, muito o sangue
De heroes valentes n'esse chão vertido.


Chorae, filhos do canto, chorae morto
O nobre Sithallin! Que de Fiona
Os suspiros resoem na planicie
Do seu Ardan querido! Ambos cahiram
Como dous gamos do deserto aos golpes
Do potente Swáran. Na refrega
Elle rugia dominando as hostes
Como o espirito fero da tormenta
Que entre as nuvens campeia, e olha em triumpho
O nauta que sossobra. Nem ocioso,
Chefe da ilha das neves, foi teu braço!
Muitos, ó Cuthullin, á morte déste!
Era o teu gladio como o fogo ethereo
Que incendeia as montanhas, e fulmina
Os íncolas do val. Calcando os mortos
Relinchava Durósnnal; e no sangue
Galopava Siffada. Todo o campo
Destroçado deixavam, como as selvas
Ficam no Cromla quando passa o vento
Carregado d'espiritos da noite.


Sobre a rocha dos ventos chora afflicta,
Ó virgem d'Inistor! Inclina ás ondas
A formosa cabeça, tu mais bella
Que o espirito da serra quando ás vezes
Do meio dia sobre um raio desce
Ao silencio de Morven! Teu amigo,
O teu joven amigo já não vive!
Pallido vacillou, cahiu extincto
De Cuthullin sob a tremenda espada!
Nunca mais teu amor em valentia
Á grandeza dos reis ha de elevar-se.
Trénar, o bello Trénar cahiu morto,
Ó virgem d'Inistor! Debalde o chamam
Seus cães uivando: no solar só vêem
Seu espectro vagar. Pende na sala
Desarmado o seu arco, e no aposento
Dos seus veados, o silencio reina!


Como rolam mil vagas contra a rocha,
Taes arremettem de Lochlin as hostes.
Como o rochedo vagas mil affronta,
Taes lhes resistem as d'Erin seguras.
Á pavorosa grita que resôa
O tinido das armas se reune.
É cada heroe como um pilar de nevoa;
Sua espada na dextra é como um raio.
De lado a lado todo o campo sôa
Semelhando a fornalha onde retumbam
Na vermelha bigorna cem martellos.
Quem são esses que tetricos pelejam
Na campina de Lena? Quem são esses
Que duas nuvens na figura imitam,
Cujas espadas sem cessar lampejam?
Em derredor os montes espantados,
Os rochedos medrosos estremecem,
Quem são elles senão d'Erin o chefe,
Senão o filho do oceano? Pelo campo
Co'a vista inquieta os acompanham sempre
Seus guerreiros anciosos. Mas a noite
Os envolve nas sombras, e crescendo
Á batalha terrivel põe remate.


Do emmaranhado Cromla sobre a encosta
Depositára Dorglas o veado
Que ao romper da manhã fôra colhido,
Estando ainda na montanha as hostes,
Eis ajuntam a lenha cem mancebos,
Dez guerreiros accendem a fogueira,
E trezentos escolhem lisas pedras:
O fumo do banquete sobe aos ares.
O poderoso espirito concentra
Cuthullin meditando, e recostado
Á lança refulgente a voz dirige
Ao filho das canções encanecido,
A Cárril d'outros tempos. «Devo acaso
«Do banquete gosar, e ha de isolado
«Longe do gamo das montanhas suas,
«Longe das festas dos salões ruidosos,
«O chefe de Lochlin ficar na praia?
«Vae, ó Cárril annoso; vae levar-lhe
«Amigaveis palavras. Annuncia
«Ao que as ondas ruidosas nos trouxeram
«Que vae dar Cuthullin o seu banquete.
«Venha ouvir o murmurio dos meus bosques
«Pelas sombras da noite, pois gelado
«Sussurra o vento nas espumeas vagas.
«Venha gosar os tremulos accentos
«Da harpa melodiosa; escutar venha
«O louvor dos heroes!»
                         Obedecendo
Parte o velho cantor, e em tom benigno
Dos escuros broqueis diz ao monarcha:
«Acorda, ó rei das selvas, eia acorda!
«D'entre as pelles da caça te levanta!
«Na alegria das taças, no banquete
«Do principe d'Erin vem tomar parte!»
Como o sinistro sussurrar do Cromla
Antes da tempestade, elle responde:
«Quando mesmo, Inisfail, as tuas virgens
«Me estendessem os braços côr de neve,
«E descobrindo os palpitantes seios
«Os amorosos olhos me lançassem,
«Firme n'este logar, como são firmes
«As rochas de Lochlin, ficára ainda!
«N'este logar esperarei que o brilho
«Da matutina luz venha chamar-me
«De Cuthullin á morte. Eu amo o sôpro
«Dos ventos de Lochlin! Elles cruzaram
«Os espaços do mar! Elles me fallam
«No zumbir das enxarcias, e me trazem
«Minhas verdes florestas á lembrança;
«As florestas do Górmal, que eu ouvia
«Rugir ao seu befejo, quando a lança
«Do javali na caça manejava.
«Oh! vae: que o torvo Cuthullin me ceda
«O throno de Cormac, ou em torrentes
«Correrá das montanhas á planicie
«De seus guerreiros o espumoso sangue!»


«Funestos são, diz Cárril d'outros tempos,
«Os ditos de Swáran!»--«Sim, funestos,
«Responde Cuthullin, lhe hão de ser elles.
«Mas ergue a voz, ó Carril, e reconta
«Os feitos do passado. Com teus cantos
«Nos abrevia a noite; em nós desperta
«O gôso da tristeza. Heroes infindos,
«E mil virgens amantes hão passado
«Na terra d'Inisfail. Doces resôam
«Os cantos do infortunio que se elevam
«Nas rochas d'Albion quando emmudece
«O rumor da caçada, e ás vozes d'Ossian
«Se casa o murmurio das correntes.»


«No tempo que passou, começa o bardo,
«Os guerreiros do oceano a Erin vieram.
«Numerosos baixeis galgando as ondas
«Aportaram d'Erin ás mansas praias.
«Os filhos d'Inisfail se levantaram
«Dos escuros broqueis sustando a raça.
«Militava no exercito Caírbar,
«Dos homens o primeiro, e o joven Grúdar,
«De garbosa figura. Desde muito
«Que entre si contendiam pela posse
«Do immaculado touro que mugia
«Na campina de Golbum; desde muito
«Que a morte viam nos agudos ferros.
«Contra os filhos do mar um tempo unidos
«Combateram a par, venceram juntos.
«Quem na montanha possuia a gloria
«De Caírbar e Grúdar? Mas, oh pena!
«Porque mugia o immaculado touro
«Na campina de Golbum? Mal que o viram
«De novo a sanha lhes brotou nos peitos.


«Sobre as margens do Lúbar combateram:
«Grúdar cahiu sem vida. Então Caírbar
«Caminhou para o valle onde Brassolis,
«Sua irmã formosissima, entoava
«O canto da tristeza. Ella narrava
«As façanhas de Grúdar, o mancebo
«De seu intimo affecto; ella chorava
«Seus perigos no campo, e sua volta
«Esperava com ancia. O branco seio
«Lhe transluzia sob as roupas leves
«Como a lua entre nuvens; e mais doce
«Era seu canto que os gemidos da harpa.
«Em seu bem adorado tinha a mente,
«E seus olhos gentis fallavam d'elle.
«--Quando virás emfim?--ella dizia;
«--Quando virás, ó poderoso em guerras?--


«--Guarda, lhe diz o irmão, guarda, ó Brassolis,
«Este escudo sangrento: vae fixal-o
«Da minha sala no elevado tecto.
«É o escudo de Grúdar!--Mal que o ouve
«A donzella estremece, e a côr perdendo,
«Sem tino, eil-a que parte. Envolto em sangue
«Na planicie de Cromla vê o amante,
«E junto d'elle, vacillando, expira.
«É este, Cuthullin, é este o sitio
«Em que repousam ambos! Estes cedros
«Lhes brotaram nas campas, e saudosos
«Do furor das tormentas os defendem.
«Formosa era Brassolis na planicie!
«Elegante era Grúdar na montanha!
«Hão de os cantos dos bardos memoral-os,
«E ao remoto porvir levar seus nomes!»


«Suave é tua voz, suave, ó Cárril,
«Diz o chefe d'Erin. São apraziveis
«Os contos do passado, como o orvalho
«Da amena primavera quando brilha
«Pelos campos o sol e a nuvem leve
«Revôa nas collinas. Ao som da harpa
«Celebra o meu amor, a luz serena
«Da solitaria estrella de Dunscaith.
«Canta a gentil Bragela, a terna esposa
«Que saudosa deixei na ilha das nevoas.
«Que fazes, doce amiga? acaso elevas
«Sobre a rocha escarpada a bella fronte,
«E meus navios descobrir procuras?
«O mar se agita ao longe: a branca espuma
«Por minhas vélas tomarás acaso.
«Recolhe-te que é noite, amor querido:
«Em teu cabello o vendaval murmura.
«Aos meus paços festivos te recolhe,
«E pensa em outros dias. Aos teus braços
«Não poderei voltar sem que serene
«A tormenta da guerra. Falla, ó Cónnal,
«Falla-me d'armas só: quero as saudades
«De meu seio expulsar, quero esquecêl-a.»


«Dos guerreiros do oceano te acautela,
«Responde o lento Cónnal. Sem demora
«Manda escoltas nocturnas que vigiem
«O campo do inimigo. Sou de voto,
«Ó Cuthullin, que a pelejar não vamos
«Sem que Fíngal, dos homens o primeiro,
«Aporte ás nossas praias, sem que brilhe
«Como os raios do sol em nossos campos.»


Sobre o escudo d'alarma bate o chefe,
E o nocturno esquadrão se põe em marcha.
O restante do exercito no campo
Ao sereno da noite se adormece.
Dos derradeiros mortos os espectros
Divagavam em torno e fluctuavam
Entre as nuvens sombrias. Longe, ao longe
Por sobre a escura solidão de Lena
Funereas vozes murmurar se ouviam.
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