VIRGINIA

Para se recitar no theatro do Príncipe-Real

    Senhores! vêde o sol; diariamente
    Nasce, cruza esse espaço e, no poente,
            Acaba de brilhar.
    É util, é preciso, é necessario,
    Não é pois inconstante, não é vario;
            É certo, é regular!

    Hervas que nutrem, animaes que comem,
    E a imagem de Deus--que falla--o homem,
            Sem essa luz, dizei:
    Vegetavam acaso, existiriam?
    Os echos d'esses valles repetiam
            Alguma voz? O que!...

    Seria tudo um ermo escuro e mudo;
    Tudo insensivel, solitario tudo!
            Mas Deus cria essa luz;
    E um mar sem praias de silencio e morte,
    Sêres de toda a casta--toda a sorte,
            Produz e reproduz!

    Sim, essa luz benefica converte,
    Por mysteriosa alchimia, frio, inerte,
            Imperceptivel grão
    Em tenras hastes, em botões mimosos,
    Folhas, flôres e fructos saborosos
            Que recamam o chão!

    Mas julgaes vós agricola sómente
    A mão do creador omnisciente?
            Pergunta singular!
    Basta só vêr a ondeada trança
    Com que elle adorna a virgem que vos lança
            O seu primeiro olhar!

    A terra é de côr varia, a planta, verde:
    Porque e para que? O que se perde
            Em ter tudo uma côr?
    O que se ganha em ser tão bem pintada,
    Symetrica, mimosa, perfumada
            Uma ephemera flôr?

    É que Deus é artista! e noite e dia
    E céo e terra e mar o denuncia...
            Vêde nascer o sol!
    Pôr-se alta noite a lua encantadora...
    Em quanto ao mesmo tempo canta e chora
            Ao longe o rouxinol!

    Deus é artista, sim; Deus ama o bello,
    Mais talvez do que o util. O desvelo
            Com que elle trata a flôr!
    Antes de abrir... que mãi tão carinhosa
    Resguarda, mais solicita que a rosa,
            Um seu botão d'amor!

    Nem podia sahir obra incompleta
    Das mãos de Deus: geometra e poeta
            Em summo grau, traçou
    A compasso a abobada celeste;
    Mas de que lindas nuvens a reveste
            Que ao vento tomam vôo!

    Creou, de fogo, o sol--o grande astro!
    E creou, não de fogo, d'alabastro
            A sua bella irmã
    --Sombra apenas do sol, desnecessaria,
    Luz phantastica, vaga, solitaria,
            Inutil, fátua, vã...

    Mas luz intima! luz do sentimento!
    Luz d'amor e de fé! que inspira alento
            A nossos corações!
    Unica luz, á qual se mede o fundo
    D'esse concavo mar... d'esse outro mundo...
            D'esse mundo de soes!

    Porque se ao sol deveis fructos e flôres,
    Á lua deveis mais, deveis amores...
            Deveis... como direi?
    Esta entranhavel, vaga saudade
    De não sei que melhor realidade,
            Que o mundo que se vê...

    Quantas vezes, depois da lida insana
    D'um dia, n'este mar da vida humana,
            Vendo surgir no céo
    Essa luz melancolica e suave,
    Eu acho então, e com que allivio, a chave
            D'este mysterio meu!...

    D'este amor por phantasticos amores...
    Comtudo mais leaes e duradores
            Que os d'esse mundo são!
    D'este mundo de sombras... até prestes,
    Sombra tambem, á sombra dos cyprestes
            Achar satisfação!

    E eu digo, digo á lua scismadora
    Com os olhos risonhos de quem chora
            Pranto consolador:
    Se pois Deus te creou porque eras bella...
    O que vale o sol mais do que uma estrella?
            Um rei do que um pintor?

    Ao vêr-te, dôce lampada, suspensa
    De vaporosa nuvem, n'essa immensa
            Abodada dos céos,
    Pareces-me o thuribulo sagrado
    Com os rolos de incenso evaporado
            Em tua honra, oh Deus!

    E a minha vista sofrega acompanha
    Esse clarão phantastico á montanha
            Ou da terra ou do mar,
    Onde, acabada a obra do seu dia,
    Astro d'amor e de melancolia,
            Se deita a descançar.

    E eu descanço tambem; filha da arte...
    Cumpre-me a mim, oh lua, contemplar-te!
            E pergunte-me alguem:
    --Tu que fazes no mundo, mulher futil?
    --O que Deus faz... na flôr, na lua inutil...
            Sou artista tambem.

Lisboa.

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