NOITE FECHADA
Autor: Cesário Verde on Friday, 11 January 2013
(L.) Lembras-te tu do sabbado passado, Do passeio que démos, devagar, Entre um saudoso gaz amarellado E as caricias leitosas do luar? Bem me lembro das altas ruasinhas, Que ambos nós percorremos de mãos dadas: Ás janellas palravam as visinhas; Tinham lividas luzes as fachadas. Não me esqueço das cousas que disseste, Ante um pesado templo com recortes; E os cemiterios ricos, e o cypreste Que vive de gorduras e de mortes! Nós saíramos proximo ao sol-posto, Mas seguiamos cheios de demoras; Não me esqueceu ainda o meu desgosto Nem o sino rachado que deu horas. Tenho ainda gravado no sentido, Porque tu caminhavas com prazer, Cara rapada, gordo e presumido, O padre que parou para te ver. Como uma mitra a cúpula da egreja Cobria parte do ventoso largo; E essa bocca viçosa de cereja, Torcia risos com sabor amargo. A lua dava tremulas brancuras, Eu ia cada vez mais magoado; Vi um jardim com arvores escuras, Como uma jaula todo gradeado! E para te seguir entrei comtigo N'um pateo velho que era d'um canteiro, E onde, talvez, se faça inda o jazigo Em que eu irei apodrecer primeiro! Eu sinto ainda a flôr da tua pelle, Tua luva, teu veu, o que tu és! Não sei que tentação é que te impelle Os pequeninos e cançados pés. Sei que em tudo attentavas, tudo vias! Eu por mim tinha pena dos marçanos, Como ratos, nas gordas mercearias, Encafunados por immensos annos! Tu sorriras de tudo: Os carvoeiros, Que apparecem ao fundo d'umas minas, E á crua luz os pallidos barbeiros Com oleos e maneiras femininas! Fins de semana! Que miseria em bando! O povo folga, estupido e grisalho! E os artistas d'officio iam passando, Com as ferias, ralados do trabalho. O quadro anterior, d'um que á candêa, Ensina a filha a ler, metteu-me dó! Gosto mais do plebeu que cambalêa, Do bebado feliz que falla só! De subito, na volta de uma esquina, Sob um bico de gaz que abria em leque, Vimos um militar, de barretina E galões marciaes de pechisbeque, E em quanto elle fallava ao seu namoro, Que morava n'um predio de azulêjo, Nos nossos labios retinio sonoro Um vigoroso e formidavel beijo! E assim ao meu capricho abandonada, Errámos por travessas, por viellas, E passámos por pé d'uma tapada E um palacio real com sentinellas. E eu que busco a moderna e fina arte, Sobre a umbrosa calçada sepulchral, Tive a rude intenção de violentar-te Imbecilmente como um animal! Mas ao rumor dos ramos e d'aragem, Como longiquos bosques muito ermos, Tu querias no meio da folhagem Um ninho enorme para nós vivermos. E ao passo que eu te ouvia abstractamente, Ó grande pomba tépida que arrulha, Vinham batendo o macadam fremente, As patadas sonoras da patrulha, E atravez a immortal cidadesinha, Nós fomos ter ás portas, ás barreiras, Em que uma negra multidão se apinha De tecelões, de fumos, de caldeiras. Mas a noite dormente e esbranquiçada Era uma esteira lucida d'amor; Ó jovial senhora perfumada, Ó terrivel creança! Que esplendor! E ali começaria o meu desterro!... Lodoso o rio, e glacial, corria; Sentámo-nos, os dois, n'um novo aterro Na muralha dos caes de cantaria. Nunca mais amarei, já que não me amas, E é preciso, decerto, que me deixes! Toda a maré luzida como escamas, Como alguidar de prateados peixes. E como é necessario que eu me afoite A perder-me de ti por quem existo, Eu fui passar ao campo aquella noite E andei leguas a pé, pensando n'isto. E tu que não serás sómente minha, Ás caricias leitosas do luar, Recolheste-te, pallida e sósinha Á gaiola do teu terceiro andar!
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Comentários
Rhodys de Rodri...
Dom, 24/03/2013 - 17:58
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Intenso naturalismo.
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