No dia brancamente nublado entristeço
Autor: Alberto Caeiro on Monday, 17 December 2012
Escrito em 1-10-1917.
No dia brancamente nublado entristeço quase a medo
E ponho-me a meditar nos problemas que finjo...
Escrito em 1-10-1917.
No dia brancamente nublado entristeço quase a medo
E ponho-me a meditar nos problemas que finjo...
_A Antonio Arroyo_
«Sonhar a vida é apenas entretel-a.
Partamos della para nós, senão
Lá vae o coração para uma estrella
E fica a gente sem o coração!»
_GUEDES TEIXEIRA_. _Esperança Nossa_
Quem vir--como eu os vejo--decorrer
Annos e annos duma vida rasa
Em miseraveis quartos d'aluguer,
Frios no inverno e no estío em braza,
--A um amôr sonhado de mulher
Allía sempre o sonho duma casa...
O aspecto duma casa raro mente,
A côr, as linhas duma frontaria
Dão logo a perceber nitidamente,
Ó grandes olhos outomnaes! mysticas luzes!
Mais tristes do que o amor, solemnes como as cruzes!
Ó olhos pretos! olhos pretos! olhos cor
Da capa d'Hamlet, das gangrenas do Senhor!
Ó olhos negros como noites, como poços!
Ó fontes de luar, n'um corpo todo ossos!
Ó puros como o céu! ó tristes como levas
De degredados!
Ó Quarta-feira de Trevas!
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Deixal-o: os olhos fecho á luz e quero...
Quero-te, oh sonho, se és doirado e lindo:
Mais que a teus fachos, pedagogo austero!
Que me condemnas em chorando e rindo.
Sempre olhos fundos, sempre esse ar severo...
Razão! não te amo; mas a ti, bemvindo,
Tu que os conselhos nunca, amor! lhe tomas;
Dás luz á lua, dás á rosa aromas.
Bate nos vidros a aurora,
Vem depois a noute escura;
E o pobre astro que ali móra,
Não abandona a costura!
Para uns a vida é d'abrolhos!
Para outros mouta de lyrios!
Bem o revelam seus olhos,
Pisados pelos martyrios!
Miseria afugenta tudo!
Miseria tem dons funestos!
Quem é que gaba o velludo
D'aquelles olhos honestos!...
Ninguem seus olhos brilhantes
Descobre n'essas alturas...
E aquellas formas tão puras,
E aquellas mãos elegantes!
Nem sempre sou igual no que digo e escrevo.
Mudo, mas não mudo muito.
A cor das flores não é a mesma ao sol
_A Bertha Cayolla Gil Vianna_, minha sobrinha
Oh Desgraça! vae-te embora,
Que esta linda criancinha
Andou no meu ventre e agora
Trago-a nos braços. É minha!...
Do berço, segue-me os passos;
Onde eu vou, seus olhos vão...
E quando a aperto nos braços
--Abraço o meu coração.
Quando o seu chôro receio,
Embalo-a, faço que acceite
A alegria do meu seio
Na brancura do meu leite...
O meu vizinho é carpinteiro,
Algibebe de Dona Morte:
Ponteia e coze, o dia inteiro,
Fatos de pau de toda a sorte:
Mogno, debruados de velludo
Flandres gentil, pinho do Norte...
Ora eu que trago um sobretudo
Que já me vae a aborrecer,
Fui-me lá, hontem: (era Entrudo,
Havia immenso que fazer!...)
--Olá, bom homem! quero um fato,
Tem que me sirva?--Vamos ver...
Olhou, mexeu na caza toda...
--Eis aqui um e bem barato.
Que magua ou que receio
Dos olhos te desata
Aljofares de prata
No jaspe do teu seio?
Bem intima ser deve
A pena que te opprime,
Flôr tenra como o vime,
Flôr pura como a neve!
--Compunge-te isso, dóe-te
Vêr esmaltando o calix
Da erma flôr dos valles
O balsamo da noite?
Se aos olhos nos affluem
As lagrimas, parece
Que a dôr nos adormece,
E as maguas diminuem.