Geral

Quem?

Não sei quem és. Já não te vejo bem...
E ouço-me dizer (ai, tanta vez!...)
Sonho que um outro sonho me desfez?
Fantasma de que amor? Sombra de quem?

Névoa? Quimera? Fumo? Donde vem?...
- Não sei se tu, amor, assim me vês!...
Nossos olhos não são nossos, talvez...
Assim, tu não és tu! Não és ninguém!...

És tudo e não és nada... És a desgraça...
És quem nem sequer vejo; és um que passa...
És sorriso de Deus que não mereço...

Frémito do meu corpo a procurar-te

Frémito do meu corpo a procurar-te,
Febre das minhas mãos na tua pele
Que cheira a âmbar, a baunilha e a mel,
Doído anseio dos meus braços a abraçar-te,

Olhos buscando os teus por toda a parte,
Sede de beijos, amargor de fel,
Estonteante fome, áspera e cruel,
Que nada existe que a mitigue e a farte!

E vejo-te tão longe! Sinto tua alma
Junto da minha, uma lagoa calma,
A dizer-me, a cantar que não me amas...

E seguia a visão.--Cria ainda achar-me

E seguia a visão.--Cria ainda achar-me,
Alta noite, na igreja solitaria
Entre os mortos, que, erectos sobre as campas,
Eram ha pouco um fumo que ondeiava
Pelas fisgas do vasto pavimento.
Olhei. Do erguido tecto o panno espesso
Rareava; rareava-me ante os olhos,
Como tenue cendal; mais tenue ainda,
Como o vapor de outono em quarto d'alva,
Que se libra no espaço antes que desça
A consolar as plantas conglobado
Em matutino orvalho. O firmamento
Era profundo e amplo. Involto em gloria,

Mas foi uma visão: foi como scena

Mas foi uma visão: foi como scena
D'imaginar febril. Creou-se, acaso,
Do poeta na mente, ou desvendou-lhe
A mão de Deus o íntimo ver da alma,
Que devassa a existencia mysteriosa
Do mundo dos espiritos? Quem sabe?
Dos vivos ja deserta, a igreja torva
Repovoou-se, para mim ao menos,
Dos extinctos, que ao pé das sanctas aras
Leito commum na somnolencia extrema
Buscaram. O terror, que arreda o homem
Do limiar do templo ás horas mortas,
Não vem de crença van. Se fulgem astros,

AVÉ CREATOR!

      Desprende pelo espaço as azas d'ouro,
      Águia de Deus, no mundo extraviada!...
      Pela patria celeste, a tua amada,
                           Vae em busca de Deus,
      Cantando um hymno em honra do seu nome,
      Que meu querer e instincto insaciavel
      Te guiarão, qual bussola admiravel,
                           Pelos infindos ceus!

ASTRO DA RUA

Fazia hontem já tarde um nevoeiro espesso.
--Que insonia em mim produz este humido vapor!--
Eu vinha enfastiado, ou turvo, emfim confesso,
Dos fumos do café, da luz e do rumor.

Um fantastico véo cobria as longas praças;
E o gaz ria atravez da grande cerração
Que em lagrimas descia ao longo das vidraças
E em flocos d'alva neve humedecia o chão.

Eu mesmo achava em tudo um tom maravilhoso.
Dispuz-me a crer no ceu a amar este ideal:
Do subito eis que passa um astro radioso
Luzindo-me atravez do magico cendal!

MISERIA SANTA

Entrando esta manhã n'um templo da cidade
Aberto á multidão mas triste e quasi só,
O ver ao desamparo a velha magestade
N'um throno a desabar, meteu-me certo dó.

Restavam tão somente alguns dourados velhos
Do passado esplendor, e foi-me facil ver
Que uma nuvem de pó cobria os evangelhos
Como cousa esquecida e impropria de se ler!

A virgem, sobretudo; a mãe predestinada
Que o Golgotha lavou nas lagrimas de fel
Que sempre hade chorar toda a mulher amada,
Ou seja a mãe de Christo, ou seja a de Rossel;

*OS MONGES DE ZURBARAN*

(IMITADO DE TH. GAUTIER)

Monges de Zurbaran! ó magros solitarios,
Que ao longo deslisaes dos grandes claustros frios,
Correndo eternamente as contas dos rosarios!

Dos remorsos sentis os santos desvarios?
Que mal vos fez a Carne, algozes de tonsura?
Espectros monacaes cavados e sombrios?

Essa materia vil--que é divina esculptura,
E que o Justo vestiu nas santas tradições,
Com que lei e razão é que bradaes--Impura?

Ó lirios da cidade, ó corações doentes...

Ó lirios da cidade, ó corações doentes
Das vagas affecções modernas e galantes;
Eu sei que vós morreis aos sons agonisantes
Das orchestras febris,--nos sonhos dissolventes!

Sois os fructos gentis que balançaes pendentes
Nas arvores da vida; e os pobres viajantes
Famintos d'ideal, sorriem triumphantes
Julgando-vos colher nas seivas innocentes!

E tragam com fervor o pomo apetecido
Que deve ter um mel oculto no tecido,
--Um raio bom do sol que nos sorri tão alto;

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