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Passa?

 

 

Passa?

 

Pode passar da primeira vírgula
Pode passar do primeiro encontro
Pode passar do primeiro beijo
Pode passar da primeira estrofe
Pode passar da primeira cama
Pode passar do primeiro parágrafo
Pode passar do primeiro ano
Pode passar do que se espera

A Flor

Tinha uma flor na trinca da terra seca
parecia trote ou mentira
o que lá for seja

mas uma flor ali tinha
apesar do sol
apesar de só
   
fora parida
ou plantada?
tinha um ar circunspecto
parecia ainda viva

de longe, uma miragem
de perto, um milagre
mas ninguém ousou arrancá-la
sequer tocá-la

mil selfies tiradas
mais tarde, um milhão de curtidas
nenhuma gota d’água 

Linhas Prosaicas Sobre o Desvairo dos Corações Partidos

Antes de tudo, não sei o que escrevo
de toda forma, essas linhas prosaicas
dirão, sem mais para o momento,

que em meu nome deixo desobrigados
ao turvo caldo das mãos lavadas

isso bem à tarde ou à noitinha

significa que não se precisa trabalhar
amar é imprescindível

mas desobrigados estão de sonegarem
a própria estafa ou fadiga
não precisam fingir bons amantes
tanto faz fadigados ou estafados

essas duas denominações são irrelevantes

o que conta é a mera concupiscência deslavada
do amor deixado para trás
como um rito conspurcado

A Velha Estação do Trem do Tempo

A estação não é a mesma estação sua
não há mais a luz pálida
dos postes de madeira nua
nem aquela tenra teimosia corada
ou esperteza meia-cura

dá até medo, pois parece 
que tudo advindo é um presságio
tão rápido o agora perece 
quanto um trem ágil
que do descarrilhado futuro já vem embalado

que passa por onde é passado
e vamos ensimesmados tão, tão
só vendo pela janela quimeras

Pássaros Azulados

Uma revoada agora me alembra
rodeia de vislumbres minha cabeça
são grandes pássaros azulados
não mais da cor da minha meia

tempinho bom pra vida inteira
um esconde-esconde pelo quarteirão
um futebol de botão
no estrelão de madeira

quem dera que o que tenho de amor
tivesse toda aquela pureza
sem querer que o vermelho da cor
fosse o mesmo da cor vermelha

pois o que era o azul daqueles pássaros
senão recortes no azul celeste
só um condimento pueril e fávaro
no azul do céu, negras silhuetas rupestres

por isso preciso de um bocado

O Cântico e o Pranto

Sempre se exigia um cântico
de alegria ou pureza
nunca se aceitava o pranto
da dor longeva

era fácil agradar a todos
já que suas indumentárias
estampavam uns nos outros
o farto e caricato bonifácio

de verdade mesmo,
nenhuma letra escarlate
ainda mais sob seus toldos
encobrindo suas espertezas

tanto que não tardou
a se popularizar, à revelia,
a castidade, o pudor 
e, elementar, a hipocrisia.

Verso Inconcebível

Tento escrever à força a poesia
devaneando paisagens, obituários,
amores fugidios
mas verso algum vem — obrigado!

poesia é um vírus incubado
um ato falho dantesco
onde a rima é outorgada
no momento de maior fraqueza

prolifera-se bolidamente
é um ataque às nossas
maiores resistências

aquele que a concebe
é quase sempre o mais frágil
nem tanto o disciplinado, o exigente

por isso abandono minha Lettera 25
desisto do batente
não depende de minha vontade
nem de minha métrica ou ritmo

métrica!
antes de dormir, me perdoo

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