Geral

O Tímido, o Púlpito e o Público

Chegou a hora de me despedir,
De ajeitar meu uniforme âmbar,
Sentir algo mastigando minha garganta.
Não, não estou minguando,
Apenas caminhando ao púlpito do remir.

Cinquenta impiedosos à minha frente,
Minhas pernas puritanas tremulantes,
Tanto menos que minhas mãos indecentes,
A folha de papel convulsionada entre elas,
Denunciando toda minha timidez.

Esqueço tudo o que foi estudado e ensaiado,
Quem era Ana Bolena, Tsé ou Maria Teresa,
Travo uma batalha ignominiosa,
Contra aquela turma de carrascos?

O Corvo Negro e o Desejo

Corvo, corvo negro,
Da cor dos meus cabelos,
Voa para longe
Com o alforje do meu desejo

Deixa-me renunciado
Como quem coisa alguma quer
Nem do inferno
Nem do céu

Como alguém que
Tem coragem de ser
Aquilo que nada é

Um engano, porque se sou
O que não era há pouco,
Mesmo que não queira,
Algo eu me tornei de novo

E a outro desejo serei entregue
Para que o corvo atenda a meu apelo,
Ainda que eu já não leve
A mesma cor nos cabelos.

Poema de Calma e Poema de Raiva

Olhando-me agora
Como uma peça airosa,
Com cheiro de tulipas, não de rosas.

Oh, parece a Bossa nossa!

Olhando-me onde mesmo?
Nalgum espelho que se esconde?
E outra: não importa também
Se flores, rosa, tulipa, não temos,
Nada.
Só é curioso o que traz essa fragrância
Que me faz espreguiçar de tanta paz.

Mas sei bem onde me vendo estou,
Fingindo o filósofo na encruzilhada
Entre a esquina do teu repouso
Com a rua da minha calma.

Olhando-me agora
Como uma peça desairosa,
Com cheiro de tulipas, não de rosas.

Ah, para, nossa!

Sintaxe da Vida

O verbo que se vive
É particípio do que nos move.
Até a conjugação de vida
Que se duvida
Do modo de outros homens,
Não se determina só pelo tempo,
Também por suas vozes.
E o que é mais importante
Para as pessoas singulares ou pluralistas
Do que a felicidade?
E para não ser muito adjetivo
Ou sindético, a felicidade plena
É aquela entranhada até os ossos.
E estranha-se quando a tristeza,
Que tem nada de subordinada,
Salta adversativa aos nossos olhos,
Não acha meio de partir,
Fica sintaticamente inamovível

Pelo Furo na Parede

Um furo na parede,
Por onde os outros
Veem a gente
Fazendo coisas
Que só quem está de fora
Surpreende-se.

A melancolia do meu velho
Amigo Atílio,
Que há 20 anos espera
Uma visita do filho.
A dona Marta
Que só fala duas palavras
O tempo inteirinho,
E a enfermeira que me lava
Como seu eu fosse um
Recém-nascido.

Saiba que eu sei que você
Nos espia por esse buraco lírico
Porque prevê e tem medo
De que seu dia chegue cínico.
A vida ensaie seu perecimento,
A morte se apresente saindo dos cueiros,
Assim que você adentrar

Dias cinzentos

Porque falas, amiga, dos dias cinzentos?
Todo o homem é uma incógnita viagem!
Deixa fluir a sombra que desgosta...
O sol sempre a sorrir também é tédio.
Nem sempre o que não temos é  tristeza
e o pranto das nuvens pode ser consolo.

O segredo está na  chuva  que cai,
no seu chorar cantante, transparente ,
  nessa voz que no silêncio chama,
  nesse íntimo sentir que tens dentro do peito.

                                                       Isa Sousa/2017

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