O Mendigo e o Anjo

O MENDIGO E O ANJO

 

Era uma vez um mendigo, seu nome, esquecido...

Vivia num tempo, num lugar, sem casa, sem lar...

Sem banho, sem alimentação adequada...

Comia lixo! Tinha verme! Bunda sempre cagada!

 

Unhas crescidas, algumas destruídas...

Dentes podres fedidos, doentes, molengas...

Cabelos esbranquiçados, acinzentados, engordurados, ensebados...

Jogavam pedras nele! Era, e é, várias vezes, ofendido! Pobre humano semi destruído!

 

Vivia na calçada, sofrido, doente, tempo passando, vida se esvaindo...

Sem nada material, sem nada familiar, sem trabalho, renda...

Inserido na miséria, paupérrimo, meio lúcido meio louco...

Tosses encatarradas! Bebidas destiladas! Esmolas e sorrisos falsos!

 

Mas, num péssimo dia eis uma visão:

Um anjo!

Ali na sua frente, ser diferente...

Lindo, limpo, agradecido, iluminado, santo, sabedor, obediente, crente no SENHOR!

 

“Sua hora chegou pobre criatura pecadora!” Bradou o anjo com voz de trovão...

“Hora?”

“Hora do quê?” Questiona o velho mendigo pasmo em pé com suas magras e cheias de feridas pernas...

 

“Hora de seu julgamento, és um pecador, sem fé, infiel... Vai para a danação para o inferno!” Declara o anjo com olhar fixo no pobre homem e em tom ameaçador.

Eis uma gargalhada!

Uma parada...

Outra gargalhada!

 

“Você tem cu?”

“Cu! Sabe o cu?”

“Aqui ó...” Com um sorriso estampando seus dentes podres o homem vira-se, abaixa-se e mostra seu traseiro sujo com partes avermelhadas, chagas, e aponta para sua parte íntima que o anjo desconhece a experiência de ter...

 

E, revoltado, declara:

“Você nunca cagou!”

“Nunca sentiu dor! Nunca, nem pensou, em ver seu corpo apodrecer, nunca foi escravo de um vício... Nunca! Nunca! Nunca passou frio ou calor, ou medo, ou sei lá mais como falar...”

“Assim, nunca passou fome, teve falta de fé... Claro, sempre teve tudo...”

“Mas, nunca teve mulher!”

“Ou, você, escravo divino, é mulher? Até é jeitoso... Não sei... O que você tem entre as pernas? Ta deixa pra lá...”

“Nunca teve medo da morte! Nunca carregou pedras, nunca sentiu o suor avermelhar os olhos!”

“Tu não nasceu coisa?”

“Se não tem macho ou fêmea? Como nascer?”

“E fica assim voando, vindo, aparece, fala tudo isso aponta o dedo e fala a condenação?”

“Muito fácil seu anjo, seu merda, seu corno, anunciador da desgraça!”

“Vai embora! Estou aqui neste meu inferno na Terra, esperando a morte certa!”

 

O homem cansado senta-se na calçada fria... Soluçando, chora, angustiadamente chora...

Uma febre o domina, a morte certa já está vindo, ele já sabia, antes do anjo vir.

O anjo sente-se certo de sua missão cumprida, fica ao longe vendo o pobre homem.

Então, aparece outro anjo:

 

“Sua hora chegou pobre criatura pecadora!”

“Hora de seu julgamento, és um pecador, sem fé, infiel... Vai para a danação para o inferno!”

O anjo condenado questiona:

“Eu estava cumprindo minha missão divina! Sou inocente! Qual foi meu erro?”

O anjo anunciador não responde...

 

A febre destrói o restante da vida humana do velho mendigo!

A morte chegou...

O anjo, anunciador de sua condenação transforma-se num espírito imundo...

Os dois no caminho para o inferno encontram-se:

 

“Qual foi meu erro?”

Pergunta o velho.

E o não anjo, não respondeu...

“Você foi condenado como eu, mesmo não vivendo e sendo como eu e ainda não me responde?” Questiona o velho morto condenado.

“Já sei qual foi seu erro!” Fala ainda o não mais mendigo...

“Você, ao ouvir e me ver, questionou!”

“Questionou se eu, uma criatura desprezada e condenada de tantas formas, ainda seria condenada eternamente... É isto? Fale! Fale!”

O anjo, já em chamas e tormentos responde:

 

“Sim! E te digo que nosso pecado é o mesmo: a crítica tanto da existência como da realidade, do futuro, e da incapacidade de mudar uma e outra coisa, mesmo sabendo da existência de um ser todo poderoso e bom! Não sabemos, ELE decide não fazer e pronto!”

 

E o mendigo no inferno:

 

“Sim, eu pensei sobre isso várias vezes: ELE pode tudo, mas não faz! Sabe tudo, mas mesmo sabendo tudo não muda a realidade como ela poderia ser mudada... Vi homens e mulheres, crianças e velhos clamando de dor para serem curados e não foram... Vi a fome levar pessoas definhando de fraqueza e nada podia ser feito... Vi tantas igrejas, tantas pregações que pediam mais e mais dinheiro insistentemente, brigas de igrejas... Vi os seres humanos correndo de um lado para outro, a vida rápida e curta passar... E aqui estou com você neste lugar...”

 

Termina o condenado eterno ex-mendigo de falar eis o anjo que condenou o seu amigo agora ex-anjo:

 

“Estou aqui com vocês dois condenados!”

 

Os dois primeiros condenados gritam atônitos:

 

“Você aqui? Questionou algo também?”

 

Responde melancolicamente o ex-anjo:

 

“Questionei sobre a chamada de um pregador manipulador corrupto para o paraíso...”

 

Todos chegam num consenso:

 

“A crítica é um dos piores pecados!”

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