Geral

*A SESTA DO SENHOR GLORIA*

É no fim do jantar. Deram tres horas
No bom relogio antigo dos avós,
E o senhor Gloria pega n'uma noz
Com um ar de quem trata com senhoras.

A casa de jantar toda pintada
E o estuque cheio d'aves, de paysagens,
De nymphas, prados, d'aguas, de boscagens,
Tem uma forma antiga e recatada.

D'involta com seus goles de Madeira
A senhora digere o seu café;
E ao lado, um filho rubido de pé
Parece um pregador sobre a cadeira.

_Mandando huma gallinha a huma Pretinha bonita, que gostava de brincar com ellas_.

As tuas fulas mãoszinhas,
Que a fome já não descarna,
E que de crearem sarna
Passão a crear gallinhas;
Acceitem creações minhas,
Que eu a outros fins guardava;
Senhora com côr de escrava,
Alta estrella, que em ti brilha,
Manda que se dê á Filha
Aquillo que o Pai furtava.

GLOZA.

Debalde as penas, e os gostos
Disfarçais, loucos Amantes,
Se os attentos circumstantes
Tem em vós os olhos postos;
De que servem falsos rostos,
Se o coração desmente
N'um instante infelizmente
Sabe perdido o longo estudo,
Pois vem destruir-vos tudo
Hum suspiro de repente.

O QUE O FOGO POUPOU DUM POEMETO QUEIMADO

_Ao Conego Manuel do Nascimento Simão_

I

Escrevo em testamento este poema
Que elle tenha, na angustia com que o ligo,
O brilho rutilante duma gemma
Achada nos farrapos dum mendigo...

Ao vesperal crepusculo da vida
E sob o olhar da morte é que o componho;
Erguendo assim, por minha despedida,
O ultimo escalão dum alto sonho.

Nesse degrau que d'entre os soes dispersos
Hade attingir a cúpula dos céus,
Direi ao mundo os derradeiros versos,
Porei o coração nas mãos de Deus!

*O Somno de João*

O João dorme... (Ó Maria,
Dize áquella cotovia
Que falle mais devagar:
Não vá o João, acordar...)

Tem só um palmo de altura
E nem meio de largura:
Para o amigo orangotango
O João seria... um morango!
Podia engulil-o um leão
Quando nasce! As pombas são
Um poucochinho maiores...
Mas os astros são menores!

Se ao enlaçal-a no peito

Se ao enlaçal-a no peito
    Me cahe desfeita uma flôr,
    Lembras-me, sonho desfeito!
          Sonho d'amor!

    Se a borboleta do calix
    D'um lirio aos ares se ergueu,
    Lembras-me, estrella dos valles!
          Lirio do céo!

    Se inda um affecto em mim vive
    Entre os que mortos possuo,
    Lembras-me, sonho que eu tive!
          Lembras-me tu!

Coimbra.

*LISBOA*

Cette ville est au bord de l'eau; on dit qu'elle este batie en
     marbre...
     (Baudelaire)

De certo, capital alguma n'este mundo
Tem mais alegre sol e o ceu mais cavo e fundo,
Mais collinas azues, rio d'aguas mais mansas,
Mais tristes procissões, mais pallidas creanças,
Mais graves cathedraes--e ruas, onde a esteira
Seja em tardes d'estio a flor de larangeira!

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