Nunca sei
Autor: Alberto Caeiro on Sunday, 23 December 2012
Nunca sei como é que se pode achar um poente triste.
Só se é por um poente não ter uma madrugada.
Mas se ele é um poente, como é que ele havia de ser uma madrugada?
Nunca sei como é que se pode achar um poente triste.
Só se é por um poente não ter uma madrugada.
Mas se ele é um poente, como é que ele havia de ser uma madrugada?
_A Santos Tavares_
Por acaso, parou na minha frente,
De _loup_ e dóminó de seda negra,
Uma mulher d'olhar resplandecente
E mento breve de figura grega.
Tomei-lhe as mãos esguias entre as minhas...
E os seus olhos doirados reluziram
Como os punhaes ao sol, quando se tiram,
Aguçados e frios, das bainhas.
--Máscara, quem és tu?
--E tu quem és?...
--Um homem que te viu e te deseja...
E um riso vago, de desdem talvez,
Floriu na sua bocca de cereja.
Primicias do meu amor!
Meu filhinho! do meu seio
Tenro fructo que á luz veio
Como á luz da aurora a flôr!
Na tua face, innocente,
De teu pai a face beijo,
E em teus olhos, filho, vejo
Como Deus é providente.
Via em lamina doirada
O meu rosto todo o dia
E a minha alma não se havia
De vêr nunca retratada?
Quando o pai me unia á face,
E em seus braços me apertava,
Pomba, ou anjo nos faltava
Que ambos juntos abraçasse!
Memoria
A J. d'Oliveira Macedo,
Eduardo Coimbra, Antonio Fogaça.
Ás horas do crepusculo, ao _Bemdito_,
Quando a formoza Lua, a leiteirinha,
Vae dar o leite ás cazas do Infinito...
Ás horas das _Trindades_, á noitinha,
Quando ha milagres e sublimes couzas
E caza o rouxinol com a andorinha...
Quando a alma das virgens religiozas,
Triste se envolve n'um burel de magoa
E os anjos noivam mail-as suas Rozas...
Aqui leitor socegado!
Velho burguez d'outras eras!
Depõe o livro de lado;
--Não leias estas chimeras!
Não corras esta carteira
Meu velho amigo sem dentes!
Em quanto geme a chaleira
Sonha em teus mortos parentes!
Mas vós amigos dos sonhos
Doces mysticas violetas,
Castos selvagens tristonhos,
E solitarios poetas!...
Que amais as tristes paysaygens
E as cousas mysteriosas,
A longa chuva, as viagens,
E as melodias nervosas.
_Ao Illustrissimo, e Excellentissimo Senhor Conde dos Arcos, sobre o
mesmo assumpto_.
CARTA.
Bateu aos vossos Portaes
Hum morador do outro Pólo;[29]
Veio ao Templo de Minerva
Dar hum recado de Apollo;
[Nota de rodapé 29: Morava muito distante.]
Vós sois dos seus obrigados,
Bebeis seu licôr divino;
Manda que lembreis na Roza[30]
O esquecido Tolentino;
[Nota de rodapé 30: Sitio, aonde morava o Ministro de Estado respectivo.]
Nunca busquei viver a minha vida
A minha vida viveu-se sem que eu quisesse ou não quisesse.
Só quis ver como se não tivesse alma
Num meio-dia de fim de primavera
Tive um sonho como uma fotografia.
Vi Jesus Cristo descer à terra.
_A Lourenço Cayolla_
Entraste com ar cançado
Numa egreja fria e triste.
Ajoelhei-me ao teu lado
--E nem ao menos me viste...
Ficaste a rezar alli,
Naquella immensa tristeza.
Rezei tambem, mas a ti,
--Que aos anjos tambem se reza...
Ficaste a rezar até
Manhã dentro, manhã alta.
Como é que tens tanta fé
--E a caridade te falta?...