A VIDA
Autor: Soares de Passos on Friday, 7 December 2012
Quando ergo á noite os olhos scismadores
Á cupula do ceu, cheia de mundos,
E perco-me nos páramos profundos
D'um mar sem fim de tremulos fulgores:
O ceu, qual templo levantado á Vida,
Armado de riquissimo thesouro,
De par em par descerra as portas d'ouro,
E attrae a si minha alma embevecida!...
Chovem-me então das cellicas alturas,
Das luminosas, candidas estrellas,
Visões sublimes, ideaes e bellas
Da Causa que deu o ser ás creaturas!...
Enorme, arredondado, reluzente,
Como se fôra um olho de Titan,
O sol no azul olhava fixamente
A natureza lubrica, pagã.
E á luminosidade transparente
Do céu avelludado da manhã,
Um melro ia cantando alegremente
Uma canção brejeira e folgazã.
Nuvens de fumo tenues, vaporosas,
Evolavam-se em fórmas caprichosas
Das chaminés esguias dos casaes.
E em choreação festiva, galhofeira,
Ouvia-se nas bandas da ribeira
Um concertante alegre de pardaes..
À minha ilustre camarada Laura haves
Pelos campos em fora, pelos combros,
Pelos montes que embalam a manhã,
Largo os meus rubros sonhos de pagã,
Enquanto as aves poisam nos meus ombros...
Em vão me sepultaram entre escombros
De catedrais duma escultura vã!
Olha-me o loiro sol tonto de assombros,
as nuvens, a chorar, chamam-me irmã!
Ecos longínquos de ondas... de universos..
Ecos dum Mundo... dum distante Além,
Donde eu trouxe a magia dos meus versos!
O céu, de opacas sombras abafado,
Tornando mais medonha a noite fea,
Mugindo sobre as rochas, que saltea,
O mar, em crespos montes levantado;
Desfeito em furacões o vento irado;
Pelos ares zunindo a solta area;
O pássaro nocturno, que vozea
No agoireiro cipreste além pousado;
Formam quadro terrível, mas aceito,
Mas grato aos olhos meus, grato à fereza
Do ciúme e saudade, a que ando afeito.
O sol rubro, em leito
De nuvens descendo,
Tremente, crescendo,
No mar se ia a pôr.
Sentado no barco,
Que a onda embalava,
Scismando cantava
O bom pescador.
A paz da sua alma
No olhar exprimia,
E a voz traduzia
Scismar do cantor:
E o canto sereno
Levava-lho a brisa,
Que á tarde deslisa
Com meigo frescor.
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«Acabem de todo
No prado as boninas,
E em vastas campinas
Não surja uma flor;
Eu canto-vos, mulher, por que vos tenho visto
Na palpebra vermelha a lagrima d'amôr,
Que vem d'Eva a Maria--a doce mãe de Christo--
Formando a stalactite immensa d'uma dôr!
Oh, quantas vezes já n'aldeia miseravel
Nas tristezas do campo, ás portas dos casaes,
Vos tenho surprehendido, em extasi adoravel,
Em quanto os filhos nús ao peito conchegaes!
A fria noite chega. Os maus, de bocca cheia,
Rebolam-se na terra: ainda pedem pão!
Com elles repartis a vossa parca ceia;
E vendo-os a dormir podeis sorrir então.
Falas de civilização, e de não dever ser,
Ou de não dever ser assim.
Dizes que todos sofrem, ou a maioria de todos,
Falaram-me os homens em humanidade,
Mas eu nunca vi homens nem vi humanidade.
Vi vários homens assombrosamente diferentes entre si.
Eu não sou eu nem sou o outro,
Sou qualquer coisa de intermédio:
Pilar da ponte de tédio
Que vai de mim para o Outro.
Mário de Sá-Carneiro, in 'Indícios de Oiro'