CANTO DE PRIMAVERA
Autor: Soares de Passos on Saturday, 1 December 2012
Deixa, Senhor, do mundo em que eu habito
A ti meu ser se evol'!...
Tem jus aos ceus quem mede esse infinito
Que vae de sol a sol!...
Sonhei na terra, amando-a muito e muito,
Novo Deus, nova lei;
Mas foi, pura illusão, baldado intuito,
Comtigo só me achei!...
Olhos do meu Amor! Infantes loiros
Que trazem os meus presos, endoidados!
Neles deixei, um dia, os meus tesoiros:
Meus anéis, minhas rendas, meus brocados.
Neles ficaram meus palácios moiros,
Meus carros de combate, destroçados,
Os meus diamantes, todos os meus oiros
Que trouxe d'Além-Mundos ignorados!
Olhos do meu Amor! Fontes... cisternas..
Enigmáticas campas medievais...
Jardins de Espanha... catedrais eternas...
Aquele, a quem mil bens outorga o Fado,
Desejo com razão da vida amigo
Nos anos igualar Nestor, o antigo,
De trezentos invernos carregado:
Porém eu sempre triste, eu desgraçado,
Que só nesta caverna encontro abrigo,
Porque não busco as sombras do jazigo,
Refúgio perdurável, e sagrado?
Ah! bebe o sangue meu, tosca morada;
Alma, quebra as prisões da humanidade,
Despe o vil manto, que pertence ao nada!
I
Lembra-me a hastea comprida
Dos lyrios brancos em flôr,
A elegancia apetecida
Do seu corpo tentador.
II
Da sua côr singular
Dá uma ideia leve
A pallidez do luar,
Batendo um floco de neve.
III
Nem o breu, nem o carvão,
Nem a noite sem estrellas,
Têm a densa escuridão
Das suas tranças tão bellas.
IV
A sua bocca, a sorrir,
Quando mostra os alvos dentes,
Lembra perolas d'Ophir
Entre dois rubís fundentes.
V
Ó vultos ideaes, fantasticos e bellos,
Que ás vezes revoaes nas salas deslumbrantes,
N'um grande mar de tulle, ethereas, fluctuantes.
Aos suspiros fataes dos meigos violoncellos;
Que bom que era sonhar nos pallidos castellos,
Á noite, á beira mar, nas solidões distantes,
Nos tempos em que a flôr dos timidos amantes
Á lua confiava os intimos anhelos!...
Agora sois gentis, despepticas, vistosas;
Pagaes por alto preço as exquisitas rosas;
Nos rapidos wagons correis o mundo em roda;
«No teu seio reclinado
Dormirei, Senhor, um dia,
Quando for na terra fria
Meu repouso procurar;
Quando a lousa do sepulchro
Sohre mim tiver cahido
E este espirito affligido
Vir a tua luz brilhar!
No teu seio, de pesares
O existir não se entretece;
Lá eterno o amor florece;
Lá florece eterna paz:
Lá bramir juncto ao poeta
Não irão paixões e dores,
Vãos desejos, vãos temores
Do desterro em que elle jaz.
Há Ouro marchetado em mim, a pedras raras,
Ouro sinistro em sons de bronzes medievais -
Joia profunda a minha Alma a luzes caras,
Cibório triangular de ritos infernais.
No meu mundo interior cerraram-se armaduras,
Capacetes de ferro esmagaram Princesas.
Toda uma estirpe rial de herois d'Outras bravuras
Em mim se despojou dos seus brazões e presas.
É noite. A noite é muito escura. Numa casa a uma grande distância
Brilha a luz duma janela.
Vejo-a, e sinto-me humano dos pés à cabeça.
Voltaire dando com o pé n'uma caveira, ria
Com certo riso mau, sinistro e mofador;
--A velha companheira, então, da Theologia
Dos santos e da Cruz bradou ao pensador:
--És tu impio Voltaire, ó verme roedor
Das folhas do Evangelho! ó Satan da ironia!
Cujos risos crueis fazem chorar Maria,
E despregam do lenho a ensanguentada flor!?
Tu tens lançado o cuspo aos astros lancinantes;
Abalado da Cruz os cravos vacillantes;
E ladrado de Deus que julgas a dormir!...