ENFADO
Autor: Soares de Passos on Thursday, 15 November 2012
Ó minha musa, então! que tens tu, meu amor?
	Que descorada estás! No teu olhar sombrio
	Passam fulgurações de loucura e terror;
	Percorre-te a epiderme em fogo um suor frio.
	Esverdeado gnomo ou duende tentador,
	Em teu corpo infiltrou, acaso, um amavio?
	Foi algum sonho mal, visão cheia de terror,
	Que assim te magoou o teu olhar macio?
	Eu quisera que tu, saudável e contente.
	Só nobres idéias abrigasses na mente,
	E que o sangue cristão, ritmado, te pulsara
Senhora, he couza sabida,
	Que aos Deozes não são vedados
	Os escondidos segredos
	Do escuro livro dos Fados;
	E pois que em tempos antigos
	Já tive alguma valia
	Co'aquelle, a quem coube em forte
	O governo da Poezia;
	Não esperando do Tempo
	O vagarozo progresso,
	E desejando augurar-vos
	O vosso feliz successo;
	Na raiz do alto Parnazo,
	Curvando o humilde joelho,
	Exclamei = Se aqui se escutão
	Votos de hum Poeta velho,
      Uma fita prendi côr de saphira
	      No leve, tenue pé d'uma andorinha;
	      Este anno regressou a pobresinha
	      E junto ao ninho seu constante gira.
	      Quando o sol no horisonte se retira
	      Esvoaça em redor de mim sósinha;
	      Tambem esta alma, soffrega, mesquinha
	      Por ti enfeitiçada geme, expira.
	      Ella na espuma branca, qual arminho
	      Foge no mar á raiva dos açores
	      Não perdendo a lembrança do seu ninho
Lá ia eu, de mãos nos bolsos descosidos;
	Meu paletó também tornava-se ideal;
	Sob o céu, Musa! Eu fui teu súdito leal;
	Puxa vida! A sonhar amores destemidos!
	O meu único par de calças tinha furos.
	- Pequeno Polegar do sonho ao meu redor
	Rimas espalho. Albergo-me à Ursa Maior.
	- Os meus astros nos céus rangem frêmitos puros.
	Sentado, eu os ouvia, à beira do caminho,
	Nas noites de setembro, onde senti tal vinho
	O orvalho a rorejar-me as fronte em comoção;
Meus nervos, guizos de oiro a tilintar
	Cantam-me n'alma a estranha sinfonia
	Da volúpia, da mágoa e da alegria,
	Que me faz rir e que me faz chorar!
	Em meu corpo fremente, sem cessar,
	Agito os guizos de oiro da folia!
	A Quimera, a Loucura, a Fantasia,
	Num rubro turbilhão sinto-As passar!
	O coração, numa imperial oferta.
	Ergo-o ao alto! E, sobre a minha mão,
	É uma rosa de púrpura, entreaberta!
Falo de ti às pedras das estradas,
	E ao sol que e louro como o teu olhar,
	Falo ao rio, que desdobra a faiscar,
	Vestidos de princesas e de fadas;
	Falo às gaivotas de asas desdobradas,
	Lembrando lenços brancos a acenar,
	E aos mastros que apunhalam o luar
	Na solidão das noites consteladas;
	Digo os anseios, os sonhos, os desejos
	Donde a tua alma, tonta de vitória,
	Levanta ao céu a torre dos meus beijos!
A noite desce, o calor soçobra um pouco,
Estou lúcido como se nunca tivesse pensado
Anoiteceu.--Nos claustros resoando
	As pisadas dos monges ouço: eis entram;
	Eis se curvaram para o chão, beijando
	O pavimento, a pedra. Oh sim, beijae-a!
	Igual vos cubrirá a cinza um dia,
	Talvez em breve--e a mim. Consolo ao morto
	É a pedra do tumulo. Sê-lo-hia
	Mais, se do justo só a herança fòra;
	Mas tambem ao malvado é dada a campa.