Olá, guardador de rebanhos
Autor: Alberto Caeiro on Wednesday, 26 December 2012
1ª publ. in Athena, nº 4. Lisboa: Jan. 1925.
«Olá, guardador de rebanhos,
Aí à beira da estrada,
1ª publ. in Athena, nº 4. Lisboa: Jan. 1925.
«Olá, guardador de rebanhos,
Aí à beira da estrada,
_A Vianna da Motta_
I
Quem por amôr se perdeu
Não chore, não tenha pena.
Uma das santas do céu
--É Maria Magdalena...
II
Minha mãe foi o que eu sou.
Eu sou o que tantas são.
Que triste herança te dou,
Filha do meu coração!
III
Meu pae foi para o degredo
Era eu inda pequena.
Se não morresse tão cedo,
Morria agora--de pena...
IV
E ha no mundo quem afronte
Uma mulher quando cae!
Nasce agua limpa na fonte,
Quem a suja é quem lá vae...
Moldada ao bem nasci, mas debil planta
Verguei de vicio ao sopro pestilente;
D'entre o vicio porém minha alma ardente
Castos hymnos a Deus saudosa canta.
Ah! se um mentido affecto amor levanta
N'um pobre coração inexperiente,
D'elles a culpa é toda! uma innocente
Não consulta a razão, razões supplanta.
Cahi, verguei, Senhor! já pervertida
Graças, beijos vendi, vendi belleza,
Triste commercio de mulher perdida.
Tenho-te muito amor,
E amas-me muito, creio;
Mas, ouve-me, receio
Tornar-te desgraçada.
O homem, minha amada!
Não perde nada, goza;
Mas a mulher é rosa...
Sim, a mulher é flôr!
Ora e, a flôr, vê tu
No que ella se resume...
Faltando-lhe o perfume,
Que é a essencia d'ella,
A mais viçosa e bella
Vê-a a gente e... basta.
Sê sempre, sempre, casta!
Terás... quanto possuo!
A Ares n'uma aldeia
Trepam-lhe pelas janellas
Jasmins, cheirosas serpentes,
E soltam-se as bambinellas
Em pregas indifferentes.
Os lyrios que são uns ais
Suspiram melancholias;
Riem quadros sensuaes
Nas largas tapeçarias.
Satyro ri nas florestas
Niobe soluça magoas,
E escuta-se entre as giestas
A voz rythmica das agoas.
E á luz dubia dos occasos
Ensanguentados do Sul
As camelias dos seus vasos
Olham voltadas o azul.
O espelho reflecte certo; não erra porque não pensa.
Pensar é essencialmente errar.
Errar é essencialmente estar cego e surdo.
I
_A Celestino Steffanina_
Vaidade de vaidades, disse o Ecclesiastes: vaidade de vaidades, e
tudo vaidade.
(_Capit. I, v. 1_).
Semeador de iniquidades,
Porque é que mandas sobre os teus eguaes?!
O mando o que é? _Vaidade de vaidades_,
Fumo que ao desfazer-se engrossa mais...
Oh minha vista o que é que foi que viste
Cá neste mundo impiedoso e rudo?
_Que só a vaidade existe_
--Em todos nós, e em tudo!...
II
_A Israel Anahory_
Amas, pobre animal! e tens tu pena?...
Sim, póde na tua alma entrar piedade?
Se póde entrar, eu sei! Negar quem ha-de
Amor ao tigre, coração á hyena!
Tudo no mundo sente: o odio é premio
Dos condemnados só, que esconde o inferno.
Tudo no mundo sente: a mão do Eterno
A tudo deu irmão, deu par, deu gemeo.
A mim deu-me esta gata, a mim deu-me isto...
Esta fera, que as unhas encolhendo
Pelos hombros me trepa e vem, correndo,
Beijar-me... Só não vivo! amado existo!