Geral

Nunca me ha-de esquecer (ingrata! escuta)

    Nunca me ha-de esquecer (ingrata! escuta)
    Não tendo eu mais talvez que os meus dez annos
    Esses olhos crueis, esses tyrannos
    Commigo em porfiada aberta lucta.
 
    Se eu fôra voraz lobo ou fera bruta
    D'entranhas más, instinctos deshumanos,
    Talvez o fructo então de teus enganos
    O não colhesses tu de face enxuta.

    Mas eu perdôo-te o mal que me has causado;
    A culpa não é tua e só devia
    Vingar-me em quem tão bella te ha formado.

*A SESTA DO SENHOR GLORIA*

É no fim do jantar. Deram tres horas
No bom relogio antigo dos avós,
E o senhor Gloria pega n'uma noz
Com um ar de quem trata com senhoras.

A casa de jantar toda pintada
E o estuque cheio d'aves, de paysagens,
De nymphas, prados, d'aguas, de boscagens,
Tem uma forma antiga e recatada.

D'involta com seus goles de Madeira
A senhora digere o seu café;
E ao lado, um filho rubido de pé
Parece um pregador sobre a cadeira.

_Mandando huma gallinha a huma Pretinha bonita, que gostava de brincar com ellas_.

As tuas fulas mãoszinhas,
Que a fome já não descarna,
E que de crearem sarna
Passão a crear gallinhas;
Acceitem creações minhas,
Que eu a outros fins guardava;
Senhora com côr de escrava,
Alta estrella, que em ti brilha,
Manda que se dê á Filha
Aquillo que o Pai furtava.

GLOZA.

Debalde as penas, e os gostos
Disfarçais, loucos Amantes,
Se os attentos circumstantes
Tem em vós os olhos postos;
De que servem falsos rostos,
Se o coração desmente
N'um instante infelizmente
Sabe perdido o longo estudo,
Pois vem destruir-vos tudo
Hum suspiro de repente.

O QUE O FOGO POUPOU DUM POEMETO QUEIMADO

_Ao Conego Manuel do Nascimento Simão_

I

Escrevo em testamento este poema
Que elle tenha, na angustia com que o ligo,
O brilho rutilante duma gemma
Achada nos farrapos dum mendigo...

Ao vesperal crepusculo da vida
E sob o olhar da morte é que o componho;
Erguendo assim, por minha despedida,
O ultimo escalão dum alto sonho.

Nesse degrau que d'entre os soes dispersos
Hade attingir a cúpula dos céus,
Direi ao mundo os derradeiros versos,
Porei o coração nas mãos de Deus!

*O Somno de João*

O João dorme... (Ó Maria,
Dize áquella cotovia
Que falle mais devagar:
Não vá o João, acordar...)

Tem só um palmo de altura
E nem meio de largura:
Para o amigo orangotango
O João seria... um morango!
Podia engulil-o um leão
Quando nasce! As pombas são
Um poucochinho maiores...
Mas os astros são menores!

Se ao enlaçal-a no peito

Se ao enlaçal-a no peito
    Me cahe desfeita uma flôr,
    Lembras-me, sonho desfeito!
          Sonho d'amor!

    Se a borboleta do calix
    D'um lirio aos ares se ergueu,
    Lembras-me, estrella dos valles!
          Lirio do céo!

    Se inda um affecto em mim vive
    Entre os que mortos possuo,
    Lembras-me, sonho que eu tive!
          Lembras-me tu!

Coimbra.

*LISBOA*

Cette ville est au bord de l'eau; on dit qu'elle este batie en
     marbre...
     (Baudelaire)

De certo, capital alguma n'este mundo
Tem mais alegre sol e o ceu mais cavo e fundo,
Mais collinas azues, rio d'aguas mais mansas,
Mais tristes procissões, mais pallidas creanças,
Mais graves cathedraes--e ruas, onde a esteira
Seja em tardes d'estio a flor de larangeira!

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