Á MORTE
Autor: Soares de Passos on Wednesday, 5 December 2012
Quando contemplo em paz teu nobre vulto
Erguido aos ceus: envolto em verde manto,
Supponho contemplar um justo,... um santo,...
Um pae,... um Deus,... algum mysterio occulto!...
Ha não sei bem que força em mim tão forte,
Não sei que grande instincto inabalavel
A levar para quanto é bello e estavel
Esta alma, para quem só Deus é norte,
Fiei-me nos sorrisos da ventura,
Em mimos feminis, como fui louco!
Vi raiar o prazer; porém tão pouco
Momentâneo relâmpago não dura:
No meio agora desta selva escura,
Dentro deste penedo húmido e ouco,
Pareço, até no tom lúgubre, e rouco
Triste sombra a carpir na sepultura:
Que estância para mim tão própria é esta!
Causais-me um doce, e fúnebre transporte,
Áridos matos, lôbrega floresta!
O amor é chamma enorme que allumia
E nos consome e gasta o coração.
Uma faúlha o ateia--a sympathia,
Quando, ao longe, nos campos d'Arzilla,
Alvejava do mouro o albornoz,
E corria, e corria veloz
O ginete de Bellamarim;
Quando o esculca, saído da villa
Da manhã ao primeiro fulgor,
Não podendo a atalaia transpôr,
Vinha ás portas bater de Çafim;
Quando em Tanger, a forte, se ouvia
De armaduras continuo tinir,
E nos ares se via luzir
O montante, a acha d'armas, e o criz;
Quando em Ceuta vencida se erguia
Sobre o alcacer pendão português,
Contra o qual na mesquita de Fês
Formosuras do inverno! Ao sol das duas horas
A aérea multidão de fadas quebradiças,
Gentis apparições dos bailes e das missas,
Desliza no fulgor das pompas seductoras.
No arfar da cazimira ha frases tentadoras
E maciezas taes nas languidas pelliças,
Que as tristes commoções, decrepitas, mortiças,
Resurgem do lethargo ó pallidas senhoras!
E muitos hão de ter uns extasis divinos
Ouvindo soluçar, á noite, aos violinos,
A vaga introducção d'uma balada aerea;
Era noite: do céu limpo e sereno
Milhões d'estrellas trémulas pendiam,
Quaes as nocturnas lampadas d'um templo,
E as ribas ermas sussurrar se ouviam.
D'alterosa galé o negro vulto
Corta ao largo, bem largo, o mar do Algarve,
E lá nas serras d'Africa fronteiras
Branqueja a espaços o albornoz do alarve.
Eu nunca guardei rebanhos,
Minha alma é como um pastor,
Conhece o vento e o sol
A horas flébeis, outonais -
Por magoados fins de dia -
A minha Alma é água fria
Em ânforas d'Ouro... entre cristais...
Mário de Sá-Carneiro, in 'Indícios de Oiro'
Achado nos seus papeis
Bem sei que hei de morrer cedo e cansado,
Alguma cousa triste em mim o diz,
E vagarei no mundo desterrado,
Como Dante chorando a Beatriz.
Pelos reinos, irei talvez curvado,
Como um proscripto princepe infeliz,
Ou como o indio pallido e exilado
Chorando o vivo azul do seu payz.
Mas no entanto, ah! ninguem ao Sol divino
Abrasou mais as azas, derretidas
Ante as duras, ferozes multidões!