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RESIGNAÇÃO

«No teu seio reclinado
Dormirei, Senhor, um dia,
Quando for na terra fria
Meu repouso procurar;

Quando a lousa do sepulchro
Sohre mim tiver cahido
E este espirito affligido
Vir a tua luz brilhar!

No teu seio, de pesares
O existir não se entretece;
Lá eterno o amor florece;
Lá florece eterna paz:

Lá bramir juncto ao poeta
Não irão paixões e dores,
Vãos desejos, vãos temores
Do desterro em que elle jaz.

Taciturno

Há Ouro marchetado em mim, a pedras raras,
Ouro sinistro em sons de bronzes medievais -
Joia profunda a minha Alma a luzes caras,
Cibório triangular de ritos infernais.

No meu mundo interior cerraram-se armaduras,
Capacetes de ferro esmagaram Princesas.
Toda uma estirpe rial de herois d'Outras bravuras
Em mim se despojou dos seus brazões e presas.

*DISPUTA*

Voltaire dando com o pé n'uma caveira, ria
Com certo riso mau, sinistro e mofador;
--A velha companheira, então, da Theologia
Dos santos e da Cruz bradou ao pensador:

--És tu impio Voltaire, ó verme roedor
Das folhas do Evangelho! ó Satan da ironia!
Cujos risos crueis fazem chorar Maria,
E despregam do lenho a ensanguentada flor!?

Tu tens lançado o cuspo aos astros lancinantes;
Abalado da Cruz os cravos vacillantes;
E ladrado de Deus que julgas a dormir!...

Passagem das Horas

Trago dentro do meu coração,
Como num cofre que se não pode fechar de cheio,
Todos os lugares onde estive,
Todos os portos a que cheguei,
Todas as paisagens que vi através de janelas ou vigias,
Ou de tombadilhos, sonhando,
E tudo isso, que é tanto, é pouco para o que eu quero.
A entrada de Singapura, manhã subindo, cor verde,
O coral das Maldivas em passagem cálida,
Macau à uma hora da noite... Acordo de repente
Yat-iô--ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô ... Ghi-...
E aquilo soa-me do fundo de uma outra realidade

Continua a Tempestade

Aqui, sobre estas aguas cor de azeite,
Scismo em meu lar, na paz que lá havia:
Carlota, á noite, ia ver se eu dormia
E vinha, de manhã, trazer-me o leite...

Aqui, não tenho um unico deleite!
Talvez... baixando, em breve, á Agoa fria,
Sem um beijo, sem uma _Ave-Maria_,
Sem uma flor, sem o menor enfeite...

Ah! podesse eu voltar á minha infancia!
Lar adorado, em fumos, a distancia,
Ao pé de minha Irmã, vendo-a bordar...

BOAS NOITES

    Estava uma lavadeira
    A lavar n'uma ribeira,
    Quando chega um caçador.

    --Boas tardes, lavadeira!

    --Boas tardes, caçador!

    --Sumiu-se-me a perdigueira
    Alli n'aquella ladeira,
    Não me fazeis o favor
    De me dizer se a bréjeira
    Passou aqui a ribeira?

    --Olhai que d'essa maneira
    Até um dia, senhor,
    Perdereis a caçadeira,
    Que ainda é perda maior.

CARTA: _A huma Senhora, que em bons Versos pedio ao A. a Sátyra do Velho_.

Senhora, o Quadro pedido
Não estava retocado,
Mas brevemente o remetto,
Deixai isto ao meu cuidado;

Mostra os erros da velhice;
Põe alguns Velhos á raza;
Custou-me pouco a pintura,
Por ter as tintas de caza;

Que já hum Amigo o vio,
Eu, Senhora, vos confesso,
Porém mostrei-lho inda em calva
Como eu tambem lhe appareço

Vós sois de mais ceremonia,
E pezais com mais rigor;
Temi, que sem rir c'os Versos,
Só vos vissem rir do Author;

*Na floresta*

      Conversa nos abetos a bafagem,
      Nas franças range o vento compassado
      E á matilha esquivando-se um veado
      Pasma de vêr no bréjo a sua imagem.

      Que rumor tão subtil, que doce agrado,
      Poesia terna e perfida, selvagem,
      Em que os echos se arrastam na folhagem
      Entre doceis de musgo avelludado.

      Irrompem as gazellas nos aceiros
      E as cobras apparecem na giesta
      Quando as gralhas alagam os olmeiros.

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