É noite
Autor: Alberto Caeiro on Saturday, 1 December 2012
É noite. A noite é muito escura. Numa casa a uma grande distância
Brilha a luz duma janela.
Vejo-a, e sinto-me humano dos pés à cabeça.
É noite. A noite é muito escura. Numa casa a uma grande distância
Brilha a luz duma janela.
Vejo-a, e sinto-me humano dos pés à cabeça.
Voltaire dando com o pé n'uma caveira, ria
Com certo riso mau, sinistro e mofador;
--A velha companheira, então, da Theologia
Dos santos e da Cruz bradou ao pensador:
--És tu impio Voltaire, ó verme roedor
Das folhas do Evangelho! ó Satan da ironia!
Cujos risos crueis fazem chorar Maria,
E despregam do lenho a ensanguentada flor!?
Tu tens lançado o cuspo aos astros lancinantes;
Abalado da Cruz os cravos vacillantes;
E ladrado de Deus que julgas a dormir!...
Trago dentro do meu coração,
Como num cofre que se não pode fechar de cheio,
Todos os lugares onde estive,
Todos os portos a que cheguei,
Todas as paisagens que vi através de janelas ou vigias,
Ou de tombadilhos, sonhando,
E tudo isso, que é tanto, é pouco para o que eu quero.
A entrada de Singapura, manhã subindo, cor verde,
O coral das Maldivas em passagem cálida,
Macau à uma hora da noite... Acordo de repente
Yat-iô--ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô ... Ghi-...
E aquilo soa-me do fundo de uma outra realidade
Aqui, sobre estas aguas cor de azeite,
Scismo em meu lar, na paz que lá havia:
Carlota, á noite, ia ver se eu dormia
E vinha, de manhã, trazer-me o leite...
Aqui, não tenho um unico deleite!
Talvez... baixando, em breve, á Agoa fria,
Sem um beijo, sem uma _Ave-Maria_,
Sem uma flor, sem o menor enfeite...
Ah! podesse eu voltar á minha infancia!
Lar adorado, em fumos, a distancia,
Ao pé de minha Irmã, vendo-a bordar...
Estava uma lavadeira
A lavar n'uma ribeira,
Quando chega um caçador.
--Boas tardes, lavadeira!
--Boas tardes, caçador!
--Sumiu-se-me a perdigueira
Alli n'aquella ladeira,
Não me fazeis o favor
De me dizer se a bréjeira
Passou aqui a ribeira?
--Olhai que d'essa maneira
Até um dia, senhor,
Perdereis a caçadeira,
Que ainda é perda maior.
Alexandre, Marilia, qual o rio
Que engrossando no Inverno tudo arraza;
Na frente das cohortes
Cérca, vence, abraza
As Cidades mais fortes.
Foi na gloria das armas o primeiro,
Morrêo na flor dos annos, e já tinha
Vencido o mundo inteiro.
Senhora, o Quadro pedido
Não estava retocado,
Mas brevemente o remetto,
Deixai isto ao meu cuidado;
Mostra os erros da velhice;
Põe alguns Velhos á raza;
Custou-me pouco a pintura,
Por ter as tintas de caza;
Que já hum Amigo o vio,
Eu, Senhora, vos confesso,
Porém mostrei-lho inda em calva
Como eu tambem lhe appareço
Vós sois de mais ceremonia,
E pezais com mais rigor;
Temi, que sem rir c'os Versos,
Só vos vissem rir do Author;
Conversa nos abetos a bafagem,
Nas franças range o vento compassado
E á matilha esquivando-se um veado
Pasma de vêr no bréjo a sua imagem.
Que rumor tão subtil, que doce agrado,
Poesia terna e perfida, selvagem,
Em que os echos se arrastam na folhagem
Entre doceis de musgo avelludado.
Irrompem as gazellas nos aceiros
E as cobras apparecem na giesta
Quando as gralhas alagam os olmeiros.
Uma taça cheia, bem lavrada,
Segurava e apertava nas mãos ambas,
Ávido sorvia do seu bordo doce vinho
Para, a um tempo, afogar mágoa e cuidado.
Entrou o Amor e achou-me sentado,
E sorriu discreto e sábio,
Como que lamentando o insensato:
«Amigo, eu conheço um vaso inda mais belo,
Digno de nele mergulhar a alma toda;
Que prometes, se eu to conceder
E to encher de outro néctar?»
E com que amizade ele cumpriu a palavra!
Pois ele, Lida, com suave vénia
Te concedeu a mim, há tanto desejoso.