O ANJO DA HUMANIDADE
Autor: Soares de Passos on Thursday, 29 November 2012
Poeta da saudade, ó meu poeta qu´rido
Que a morte arrebatou em seu sorrir fatal,
Ao escrever o Só pensaste enternecido
Que era o mais triste livro deste Portugal,
Pensaste nos que liam esse teu missal,
Tua bíblia de dor, teu chorar sentido
Temeste que esse altar pudesse fazer mal
Aos que comungam nele a soluçar contigo!
Ó Anto! Eu adoro os teus estranhos versos,
Soluços que eu uni e que senti dispersos
Por todo o livro triste! Achei teu coração...
Adamastor cruel! De teus furores
Quantas vezes me lembro horrorizado!
Ó monstro! Quantas vezes tens tragado
Do soberbo Oriente os domadores!
Parece-me que entregue a vis traidores
Estou vendo Sepúlveda afamado,
Co'a esposa e co'os filhinhos abraçado,
Qual Mavorte com Vénus e os Amores.
Parece-me que vejo o triste esposo,
Perdida a tenra prole e a bela dama,
Às garras dos leões correr furioso.
Eis o pedido simples que te indico,
Se acaso o teu amor do meu partilha:
Ama-me com o amor que eu te dedico
E pensa em mim, como em ti penso, filha.
A música p'ra mim tem seduções de oceano!
Quantas vezes procuro navegar,
Sobre um dorso brumoso, a vela a todo o pano,
Minha pálida estrela a demandar!
O peito saliente, os pulmões distendidos
Como o rijo velame d'um navio,
Intento desvendar os reinos escondidos
Sob o manto da noite escuro e frio;
Sinto vibrar em mim todas as comoções
D'um navio que sulca o vasto mar;
Chuvas temporaes, ciclones, convulsões
Volteiam dentro de mim,
Em rodopio, em novelos,
Milagres, uivos, castelos,
Forcas de luz, pesadelos,
Altas tôrres de marfim.
Ascendem hélices, rastros...
Mais longe coam-me sois;
Há promontórios, farois,
Upam-se estátuas de herois,
Ondeiam lanças e mastros.
Zebram-se armadas de côr,
Singram cortejos de luz,
Ruem-se braços de cruz,
E um espelho reproduz,
Em treva, todo o esplendor...
Eu gosto de velar a percorrer os mundos
Ó noite dos bons canticos,
Aos lividos clarões dos astros vagabundos
Nos extasis romanticos,
Emquanto a vil cidade, a cortesã devassa
Dos falsos ouropeis,
Com seus famintos cães, a sua lua baça
E os seus negros bordeis,
Resona torpemente aos beijos deleterios
D'alguns velhos amantes;
--Os longos hospitaes e os tristes cemiterios
Que a afagam delirantes!
Eis a velha cidade! a cortesã devassa,
A velha imperatriz da inercia e da cubiça,
Que da torpeza acorda e á pressa corre á missa!
Baixando o olhar incerto em frente de quem passa!
Ella estreita no seio a velha populaça,
Nas vis dissoluções da lama e da preguiça,
E nunca o santo impulso, o grito da Justiça,
Lhe fez estremecer a fibra inerte e lassa!
E póde receber o beijo e a bofetada
Sem que sinta o rubor da colera sagrada
Acender-lhe na face as duas rosas bellas!
«Meia-noite bateu, volvendo ao nada
Um dia mais, e caminhando eu sigo!
Vejo-te bem, oh campa mysteriosa...
Eu vou, eu vou! Breve serei comtigo!
Qual tufão, que ao passar agita o pégo.
Meu placido existir turvou a sorte.
Halito impuro de pulmões ralados
Me diz que nelles se assentou a morte.
Em quanto mil e mil no largo mundo
Dormem em paz sorrindo, eu vélo e penso,
E julgo ouvir as preces por finados,
E ver a tumba e o fumegar do incenso.
Escrito em 5-6-1922.
Dizem que em cada coisa uma coisa oculta mora.
Sim, é ela própria, a coisa sem ser oculta,