Nunca busquei viver a minha vida
Autor: Alberto Caeiro on Saturday, 22 December 2012
Nunca busquei viver a minha vida
A minha vida viveu-se sem que eu quisesse ou não quisesse.
Só quis ver como se não tivesse alma
Nunca busquei viver a minha vida
A minha vida viveu-se sem que eu quisesse ou não quisesse.
Só quis ver como se não tivesse alma
Num meio-dia de fim de primavera
Tive um sonho como uma fotografia.
Vi Jesus Cristo descer à terra.
_A Lourenço Cayolla_
Entraste com ar cançado
Numa egreja fria e triste.
Ajoelhei-me ao teu lado
--E nem ao menos me viste...
Ficaste a rezar alli,
Naquella immensa tristeza.
Rezei tambem, mas a ti,
--Que aos anjos tambem se reza...
Ficaste a rezar até
Manhã dentro, manhã alta.
Como é que tens tanta fé
--E a caridade te falta?...
Tenho a cabeça aberta ao que não me cumpro...
O corpo descansa na cabeça futura;
espera, ainda, a casa que não encontro na estrada.
Um dia serei sem dias.
Não terei calendário.
Serei ao vento...
-reconforto-me.
As mãos perguntam a primavera...
O sol desaba como àgua ardente.
E eu limito-me a desabrochar...
Dizem-me que assim é...
...a natureza das coisas...
Cosi trapassa, al trapassar d'un giorno,
Della vita mortale il fiore e 'l verde,
Nè, perchè faccia indietro april ritorno
Si rinfiora ella mai, nè si rinverde.
TASSO.
Foi-se-me pouco a pouco amortecendo
A luz que n'esta vida me guiava,
Olhos fitos na qual até contava
Ir os degraus do tumulo descendo.
Ah! compadre, a gente foge,
Desabelha com calor;
Aqui faz fresco na loge,
É onde se está melhor;
Mas que calor que fez hoje!
--Pois, olhe, assim eu me désse
De inverno quando faz frio,
Como agora que elle aquece.
Tome dois banhos no rio,
Logo vê como arrefece.
--Compadre, nunca me traga
Taes coisas á collação;
Lembra-me a maldita draga,
Compadre do coração!
Não me falle n'essa praga!
Ó meu cachimbo! Amo-te immenso!
Tu, meu thuribudo sagrado!
Com que, bom Abbade, incenso
A Abbadia do meu passado.
Fumo? E occorre-me á lembrança
Todo esse tempo que lá vae,
Quando fumava, ainda criança,
Ás escondidas do meu Pae.
Vejo passar a minha vida,
Como n'um grande cosmorama:
Homem feito, pallida Ermida,
Infante, pela mão da ama...
Por alta noite, ás horas mortas,
Quando não se ouve pio, ou voz,
Fecho os meus livros, fecho as portas
Para fallar comtigo a sós.
Não tarda a sombra, ahi. Vae alto o Sete-Estrello
São horas d'ella vir. Minha alma, attende!
Que já a lua, a sentinella, rende
Na esplanada do céu, ás portas do Castello...
Oiço um rumor: talvez... Eil-a, é ella: ao longe, avisto
Seu vulto em flor: postas as mãos no seio,
Com o cabello separado ao meio,
Todo caido para traz, como o de Christo!
Ó irmã das açucenas!
Meu coração é um horto,
Semeado de mais penas
Que as chagas d'um Christo morto.
Tanto é ver-te o meu desejo!
Tanto em mim poder conservas!
Que eu creio se não te vejo
Já ser debaixo das hervas!
..........................................
Debaixo d'essas janellas
Sempre crueis e fechadas,
Hontem á noute, ás estrellas,
Deram-me quatro facadas!
Mas nenhuma fez no peito
O mal,--que por minha cruz!
Os teus olhos me tem feito
Dando facadas de luz!
_Ao Excellentissimo Senhor D. Lourenço de Lima, tendo promettido ao A.
que quando chegasse das Caldas, havia lembrar a mercê de se imprimirem
estas Obras_.
CARTA.
Ora do cume dos Montes,
Ora em suas verdes fraldas,
Hia estender os meus olhos
Na longa estrada das Caldas;
Sobre escumozos cavallos
Trotando empoada sege,
Disse quem fez os meus versos
=Ahi vem quem os protege;=