Com os eus e a alma...

Deixei lá distante
Algures escondido
Um eu meu amigo.
E agora perdido,
Em luta constante
Sozinho e comigo
De tão escaldante
Sou só o restante
Dum grande castigo!
Solidão imensa! 
Que sofre e que pensa
Na guerra dos eus,
Sem sonhos dos teus,
Reparo e entendo 
Que nunca pretendo
Que os teus sejam meus.
Com os eus e a alma,
Que os une e acalma 
Vou vendo o abismo,
Não penso nem cismo,
Não paro, não quero!
Nem quero saber

A Vida e a Cidade

Quem inventou a cidade foi

Quem inventou as horas.

E quem inventou as horas

Acabou com o tempo da vida.

 

Antes da cidade não havia hora;

Havia o sol e a noite.

Havia vida

Alegria, paz, tranquilidade…

 

Trabalho, família, brincadeira…

Hoje, há cidades.

Temos hora para tudo

E nenhum tempo para viver.

Anatomia Poética - O Gozo

És a prova cabal do prazer máximo.

Da alegria intensa que te gera, deixas apenas um torpor

Doce; de explosão, de êxtase!

A satisfação indelével da consumação

Da vida, no poder de gerar outras mais.

 

És tão excelente que tudo o que é bom remete a ti!

Tudo o que é vital te é associado.

A marca do fim da infância, da inocência.

Mas não és aprazível, és asqueroso ao toque!

Culpa tua, por destruir o momento mais essencial de toda existência!

Anatomia Poética - O Sangue

És fascinante, hipnótico!

Tens cheiro de vida

E gosto de morte!

És a cor, o vigor, a excitação

E o desespero da razão pura.

 

Uma simples gota tua me revela por completo;

Tua fuga, minha ruína, minha destruição.

És quase tudo de mim. Sou apenas teu dique;

Onde corres e brincas a teu bel prazer

Fazendo-me ser. E viver.

Anatomia Poética - O Suor

És a prova do trabalho,

A paga do esforço,

A lembrança mais perene dos meus feitos mais efêmeros.

Efeito de minha inquietação,

Talvez, por isso, agoniante?

 

Sim, porque não és agradável!

És irritante, desconfortável… terrível!

Inconveniente, mas favorável!

És a única coisa que me impede de explodir

Sob o incessante calor da vida.

Anatomia Poética - A Lágrima

És indecisa, estranha… um paradoxo!

Doce e salgada;

Alegre e triste;

Incômoda e benvinda.

Mas és confortável, aliviadora.

 

Brotas das rochas mais duras:

A dor, a tristeza, a saudade e a intensa alegria.

E escorres suave, suave…

Um singelo carinho para abrandar

A violência que te provocou.

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