Sonhei esta noite que te trazia a Primavera aos dias

Sonhei esta noite
que te trazia a primavera aos lábios...

(E esta noite
não mais foi
do que
qualquer
uma
que podia ter sido
qualquer uma das outras)

Sonhei que terias na voz
um esquecimento
qualquer
uma palavra que porventura
te tivesse ficado por dizer

Mas eis-me de volta aos dias
sem varandas
sem esperas

DUVIDA

Amas-me a mim! Perdôa;
    É impossivel! Não,
    Não ha quem se condôa
    Da minha solidão.

    Como podia eu, triste,
    Ah! inspirar-te amor,
    Um dia que me viste,
    Se é que me viste... flôr!

    Tu, bella, fresca e linda
    Como a aurora, ou mais
    Do que a aurora ainda,
    Mal ouves os meus ais!

    Mal ouves porque as aves
    Só soltam de manhã
    Seus canticos suaves;
    E tu és sua irmã!

*Ao Canto do Lume*

Novembro. Só! Meu Deus, que insupportavel mundo!
    Ninguem, viv'alma... O que farão os mais?
Senhor! a Vida não é um rapido segundo:
Que longas horas estas horas! Que profundo
    Spleen o d'estas noites immortaes!

Faz tanto frio. (Só de a ver me gela, a cama...)
Que frio! Olá, Joseph! bota mais carvão!
E quando todo se extinguir na aurea chamma,
Eu botarei (para que serve? já não ama...)
As cinzas brancas, meu vermelho coração!

*FARÇA TRISTE*

Je suis son pére.
     (Flaubert)

Ninguem diria ao certo a edade que teria!
Era um velho devasso e histrião--bom guia
Para mostrar de noute, aos baços candieiros,
As casas de bordeis aos velhos estrangeiros.

Encontravam-o sempre a errar, imbecilmente;
Era alto, magro, hostil, e dava-se á aguardente--

Tinha um certo tremor em todo o corpo--o vinho
Dava-lhe um rir constante; tinha o sorrir mesquinho
E dubio que nos faz arrepiar mau grado;--
Fôra mendigo e actor, ladrão, bobo e soldado.

Estando o A. doente, e mandando pedir algum prato á meza...

_Estando o A. doente, e mandando pedir algum prato á meza, aonde jantava
o sobredito Leigo_.

Hum estomago cansado,
De cuja antiga ruina
Tem sido cauzas iguaes
A molestia, e a Medicina;

Que tendo em si dos tres Reinos
As perigozas heranças,
Só não bebeo das Boticas
Os S. Migueis, e as balanças;

Hum estomago sem forcas,
E ás leis geraes ínfiel,
Que não trabalha em diamante,
Como o de Fr. Manoel;

A hum Leigo, que era vesgo...

_A hum Leigo, que era vesgo, e que nunca teve fastio; e a quem por acazo
tocou na cabeça a ponta de hum espadim_.

Ferio sacrilega espada,
Alçada por mão traidora,
Cabeça, que sempre fôra
Té aos Barbeiros vedada;
D'entre a grenha profanada
Corre o sangue á terra dura;
Tosquiou-se a matadura;
E o casco rebelde a ordens,
Precizou destas desordens
Para ter Prima Tonsura.

CANTIGAS: _Feitas nas caldas com o Estribilho_.

_Olhos meus, cansados olhos,
O vosso officio he chorar_.

Nas Caldas, nas tristes Caldas
Alegria vim buscar;
Quiz de noíte ver o Sol,
Quiz achar fogo no mar.
    _Olhos meus, etc._

Que importa mudar de terra,
E baldados passos dar,
Se a toda a parte a que os volto
Vai comigo o meu pezar.
    _Olhos meus, etc._

Vejo pálidos doentes
Pela Copa passear,
Oiço de antigas molestias
Tristes effeitos contar.
    _Olhos meus, etc._

Magnificat

Quando é que passará esta noite interna, o universo,
E eu, a minha alma, terei o meu dia?
Quando é que despertarei de estar acordado?
Não sei. O sol brilha alto,
Impossível de fitar.
As estrelas pestanejam frio,
Impossíveis de contar.
O coração pulsa alheio,
Impossível de escutar.
Quando é que passará este drama sem teatro,
Ou este teatro sem drama,
E recolherei a casa?
Onde? Como? Quando?
Gato que me fitas com olhos de vida, que tens lá no fundo?
É esse! É esse!

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