Navio que partes para longe
Autor: Alberto Caeiro on Saturday, 15 December 2012
Navio que partes para longe,
Por que é que, ao contrário dos outros,
Não fico, depois de desapareceres, com saudades de ti?
Navio que partes para longe,
Por que é que, ao contrário dos outros,
Não fico, depois de desapareceres, com saudades de ti?
Il pleure dans mon coeur
Comme il pleut sur la ville.
Verlaine
_A Vicente Arnoso_
Batem leve, levemente
Como quem chama por mim...
Será chuva? Será gente?
Gente não é certamente
E a chuva não bate assim...
É talvez a ventania;
Mas ha pouco, ha poucochinho,
Nem uma agulha bolia
Na quieta melancolia
Dos pinheiros do caminho...
Ralada de ruins sonhos
Já desperta está Leonor,
E 'inda agora os céus d'oriente
Da manhan tingiu o alvor.
«Guilherme, és morto?--ella exclama--
Ou trahiste a pobre amante?
Se vives, porque retardas
De te eu ver feliz instante?»
Nas tropas de Friderico
Tempo havia que partíra
Para a batalha de Praga,
E cartas delle quem vira?
Mas a imperatriz e o rei[1],
De guerras, emfim, cansados,
Depondo os animos feros,
De paz faziam tractados.
Morreu, Vae a dormir, vae a sonhar... Deixal-a!
(Fallae baixinho: agora mesmo se ficou...)
Como padres orando, os choupos formam ala,
Nas margens do ribeiro onde ella se afogou...
Toda de branco vae, n'esse habito de opala,
Para um convento: não o que o Hamlet lhe indicou,
Mas para um outro, horror! que tem por nome _Valla_,
D'onde jamais saiu quem, lá, uma vez entrou!...
O lindo Por-do-Sol, que era doido por ella,
Que a perseguia sempre, em palacio e na rua,
Vede-o, coitado! mal pode suster a vela...
A João de Deus
Vejo apontar o hynverno...
os crepitantes frios
Me açoutam as vidraças...
(Francisco Manoel)
Alguns dormem nas mezas, debruçados,
Junto aos restos de um vinho já bebido;
--Outros contam seus casos desgraçados.--
Um d'elles alto, magro, mal vestido,
Conta historias d'amor, lançando fumo
D'um cachimbo de gesso ennegrecido.
Um tenta levantar um outro a prumo
Sobre os hombros, e um calvo, e já vermelho
Faz das suas miserias um resumo.
_6 de Agosto de 1870._
Desfraldam-se estandartes e trombetas,
Ouve-se o crepitar da espingarda;
Quando o canhão rouqueja á retaguarda
Scintilla a larga messe das baionetas.
As coiraças protegem a vanguarda,
Dos capacetes poisam nas facetas
As crinas marciaes, vermelhas, pretas,
Com expressão terrivel e galharda.
Bonnemain determina a voz de carga:
Os estribos telintam, fulge a espada,
Debalde a morte os esquadrões embarga.
Escrito em 20-6-1929
Não tenho pressa: não a têm o sol e a lua.
Ninguém anda mais depressa do que as pernas que tem.
_A João Barreira_
«Em Evora vi um menino...
...Que a dois annos não chegava
...Era de maravilhar»...
Garcia de Rezende. _Miscellanea._
Num convento solitario
D'Evora, cidade clara,
Claro celleiro de pão,
Existe uma imagem rara
Obra dum imaginario
Dos tempos que já lá vão...
É um menino Jesus,
De bochechinha brunida
Côr de maçã camoeza,
Mas no seu rosto transluz
Uma expressão dolorida
Que enche a gente de tristeza...
Cahe a folha da rosa pudibunda,
Cahe a rosa da face virginal,
Cahe das nuvens a aguia moribunda,
Cahe o sol na montanha occidental.
Cahe a onda na praia, cahe do somno
O poeta na luz; e cahe das mãos
Dos despostas o sceptro, elles do throno,
Como a seus pés cahiram seus irmãos!
Cahe dos labios o riso; cahe dos olhos
A lagrima tambem, que d'alma sahe;
Cahe a rocha no mar, cahe nos abrolhos
A flôr de liz; de louro a folha cahe.