Tabacaria
Autor: Álvaro de Campos on Friday, 7 December 2012Escrito em 15-1-1928.
Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.
Escrito em 15-1-1928.
Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.
Meu coração aqui jaz, erma ruina
Onde habita a ironia, o vil phantasma
Golphão anachoreta entre o miasma
Perseguido p'la brisa crystallina.
O lyrio, o trevo ri junto á bonina,
Só de raiva a minha alma abdica, pasma
Porque a tristeza famulenta traz-m'a
Nas duras garras d'ave de rapina.
Meu coração aqui, sob esta alfombra
Dos pallidos desdens, justos ciumes
Adora morto e frio a tua sombra.
Oh Terra, Virgem mãe da Humanidade,
Pelos fructos que dás eu te bemdigo!
Cheia de graça e cheia de bondade,
O espirito de Deus seja comtigo!
Tu que és do Sol a esposa immaculada,
Que entre perfumes, canticos e flôres,
Passas no azul dos ceus, virgem coroada
Com o candido mimbo dos amores:
Como escuta piedosa a mãe seu filho,
E d'elle acceita o mais pequeno objecto,
Ouve a harpa d'esta alma onde dedilho
Por ti um canto d'entranhado affecto!
Ao Botto de Carvalho
Tarde de brasa a arder, sol de verão
Cingindo, voluptuoso, o horizonte...
Sinto-me luz e cor, ritmo e clarão
Dum verso triunfal de Anacreonte!
Vejo-me asa no ar, erva no chão,
Oiço-me gota de água a rir, na fonte,
E a curva altiva e dura do Marão
É o meu corpo transformado em monte!
E de bruços na terra penso e cismo
Que, neste meu ardente panteísmo
Nos meus sentidos postos e absortos
Meus olhos, atentai no meu jazigo,
Que o momento da morte está chegado;
Lá soa o corvo, intérprete do fado;
Bem o entendo, bem sei, fala comigo:
Triunfa, Amor, gloria-te, inimigo;
E tu, que vês com dor meu duro estado,
Volve à terra o cadáver macerado,
O despojo mortal do triste amigo:
Na campa, que o cobrir, piedoso Albano,
Ministra aos corações, que Amor flagela,
Terror, piedade, aviso, e desengano:
Já sobre o coche de ébano estrelado,
Deu meio giro a Noite escura e feia,
Que profundo silêncio me rodeia
Neste deserto bosque, à luz vedado!
Jaz entre as folhas Zéfiro abafado,
O Tejo adormeceu na lisa areia;
Nem o mavioso rouxinol gorjeia,
Nem pia o mocho, às trevas acostumado.
Só eu velo, só eu, pedindo à Sorte
Que o fio com que está mih'alma presa
À vil matéria lânguida, me corte.
Consola-me este horror, esta tristeza,
Porque a meus olhos se afigura a Morte
No silêncio total da Natureza.
I.
O sol passa nos céus:--sob o carvalho,
Por cujos troncos se pendura a vide,
Cego ancião,
Mirrada dextra supplice estendendo,
Ao passageiro, que o despreza, implora
Do opprobrio o pão.
Ninguem o escuta, o dia foge, e a noite
Involve a luz no manto impenetravel:
E elle chorou:
E em seus andrajos para choça alpestre,
Sem se queixar de Deus, tardios passos
Encaminhou:
Pura em sua innocencia.
Entre a sarça espinhosa,
Purpurea esplende, inda botão intacto,
Na madrugada a rosa.
É da campina a virgem
A pudibunda flor;
Em seus efluvios matutina brisa
Bebe o primeiro amor.
O sol inunda as veigas:
Calou-se o rouxinol;
E a flor, ebria de gloria, á luz fervente,
Desabrochou-a o sol.
O sôpro matutino
No seio seu pousára:
Prostituida á luz, fugiu-lhe a brisa,
Que a linda rosa amára.
Passae larvas gentis na rua da cidade
Aonde se atropella a turba folgazã;
A noite é um tanto agreste e cheia d'humidade
Mas o tedio mortal precisa a claridade
Que em vosso olhar trazeis, vizões do macadam!
Estatuas sem calor! vós sois das grandes vazas
D'um corrompido mar as Deusas menos vis!
Se á noite abandonaes, voando, as pobres casas,
E vindes pela rua enlamear as azas,
Quem sabe a fome occulta, as sedes que sentis!