PARTIDA
Autor: Soares de Passos on Friday, 30 November 2012
A minha alma immortal n'este exilio onde existe,
Abrigando no seio a ideaes tão risonhos,
E entre os homens só vendo um sarçal ermo e triste,
Onde outro'ra plantára o jardim dos seus sonhos:
Teve a sorte cruel d'uma flôr, que enganada
Pelos raios do sol, ainda inverno e entreabrio;
Mas que dias depois, co'o cahir da geada,
E o soprar do nordeste, afinal, succumbio!...
Meu doido coração aonde vais,
No teu imenso anseio de liberdade?
Toma cautela com a realidade;
Meu pobre coração olha cais!
Deixa-te estar quietinho! Não amais
A doce quietação da soledade?
Tuas lindas quimeras irreais
Não valem o prazer duma saudade!
Tu chamas ao meu seio, negra prisão!...
Ai, vê lá bem, ó doido coração,
Não te deslumbre o brilho do luar!
Não estendas tuas asas para o longe...
Deixa-te estar quietinho, triste monge,
Na paz da tua cela, a soluçar!...
De cerúleo gabão não bem coberto,
passeia em Santarém chuchado moço,
mantido, às vezes, de sucinto almoço,
de ceia casual, jantar incerto;
dos esbrugados peitos quase aberto,
versos impinge por miúde e grosso;
e do que em frase vil chamam caroço,
se o que, é vox clamantis in deserto;
pede às moças ternura, e dão-lhe motes;
que, tendo um coração como estalage,
vão nele acomodando a mil peixotes.
Ha de lembrar-me sempre a immensa magua
Que vi transparecer nos olhos teus
Ceruleos, languescentes, rasos de agua,
Quando, poisando os labios sobre os meus,
N'um demorado osculo celeste,
Tremente e carinhosa me disseste
Esta palavra:--Adeus!--
Manhã no campo. O som, a luz, o aroma, a côr,
Fundem-se alegremente em galas festivaes.
A luz por todo o espaço, o aroma em cada flôr,
Trazei mortos á valla; a hydra está com fome
E deve ser-lhe longa a hora em que não come!
Olhae como ella mostra aquelles que a vão ver,
Inerte, sem pudor, de fauce escancarada,
A amargura cruel da bocca desdentada
Que pede de comer!
Lançae ao monstro informe algum repasto novo!
Trazei-lhe carne humana; arremeçae-lhe o povo.
Tranzido pelo frio ou morto pelo sol!
E visto haver na fera abysmos insondaveis
Mandae-lhe as legiões dos grandes miseraveis
Que morrem sem lençol!
E eu que sou o rei de toda esta incoerência,
Eu próprio turbilhão, anseio por fixá-la
E giro até partir... Mas tudo me resvala
Em bruma e sonolência.
Se acaso em minhas mãos fica um pedaço de ouro,
Volve-se logo falso... ao longe o arremesso...
Eu morro de desdém em frente dum tesouro,
Morro á mingua, de excesso.
Alteio-me na côr à fôrça de quebranto,
Estendo os braços de alma - e nem um espasmo venço!...
Peneiro-me na sombra - em nada me condenso...
Agonias de luz eu vibro ainda entanto.
«Impio, silencio! A tua voz blasphema
Da noite a paz perturba.
Verme, que te rebellas
Sob a mão do Senhor,
Vês os milhões d'estrellas
De nitido fulgor,
Que, em ordenada turba,
A Deus entoam incessantes hymnos?
Quantas vezes apaga
Do livro da existencia
Um orbe a mão do Eterno!
E o bello astro que expira
Maldiz a Providencia,
Maldiz a mão que o esmaga?
Acaso pára o cantico superno?
Ou apenas suspira
O moribundo,
Que se chamava um mundo?
Dizes-me: tu és mais alguma cousa
Que uma pedra ou uma planta.
Dizes-me: sentes, pensas e sabes